Cabia tudo na vastidão do meu
medo. E o universo era o saco. Solidão e pânico. Sempre tive medo. Ainda na
memória me vejo. Olhos arregalados perseguindo o movimento lento e ameaçador.
Ele era como um monstro. Uma fera que espreitava as ruas da minha imaginação de
guri.
Tinha olhos profundos e uma
barba espessa. Caminhava lentamente carregando o peso de um corpo cansado e
maltrapilho. Nas costas o temido saco.
Os discursos que construíam a
imagem daquele homem me diziam que era para “pegar as crianças mal educadas”.
Era uma ameaça, um risco que nós meninos do Recinto da Viação Férrea temíamos.
Não lembro o nome. E me sinto
culpado por isso. É como se tivéssemos definitivamente tirado a humanidade
daquele homem. Sim. Era um homem. E isso, agora, já com os meus quarenta e
cinco anos, me faz pensar. Havia uma história sob o andar lento e pesado
daquela criatura. Uma história que ia muito além de sua figura triste a
perambular pelos trilhos da minha memória. História que nós crianças não queríamos
conhecer. Não podíamos. Ele era o nosso monstro. Nossa criatura dos sonhos e
pesadelos.
Quando queriam nos assustar,
diziam que ele ia nos “pegar”. “Olha o homem do saco...” e nós tremíamos.
Reduzira, ele, o homem do
saco, toda a sua vida. Para caber em seu encardido saco, carregado nas costas.
As vezes penso que fazemos a
mesma coisa. Nossas “pequenas” vidas. Carregadas em nossas malas, nossos
computadores, nossos telefones, nossos carros...
Somos um pouco mais “limpos”
e vistosos. Mas a pobreza é a mesma. E a velocidade com que movemos nossos
corpos, não nos distância muito dos passos cansados do “homem do saco”. Ele era
o monstro da minha rua, da minha infância. Nós somos os monstros de nós mesmos.
Em nossas costas, muito bem
acondicionado, carregamos o nosso “eu”, nossa identidade, exatamente igual a de
todo o resto.
Lembro de ver o homem do saco
sentado comendo um pedaço de pão. O tempo era dele. Apenas o tempo. Nada mais
lhe pertencia. Só o tempo. Caminhava, sentava, parava, andava, no ritmo que queria.
Os “novos homens do saco” são
apenas fluxos. Tão despersonalizados que se confundem nos gosto, atitude,
estilo e pensamento. E não podem parar. Jamais podem largar o saco, a mala que
carregam sobre os ombros. Pelo contrário. Devem acompanhar o discurso que lhes
obriga a sempre “evoluírem”, a sempre “aprenderem mais” a sempre
“aperfeiçoarem-se” mais.
A mala, o saco... deve estar
sempre cheio. Carregado. Carregado de informação, de conhecimento, de
certificados, de capacidades... e a rua se torna o mundo, e o mundo é um
movimento de velocidade e não-pertencimento a nada.
Somos sugados, devorados por
um espírito que exige sempre mais de nosso corpo e da nossa mente. Até o
esgotamento.
Somos avaliados pelo que
produzimos. E se não pudermos mais suprir adequadamente os “gostos” e desejos
do grande mercado que orienta nossa ética e moral contemporânea, somos
literalmente “excluídos”.
1 Comentário
Ronie Von,
Gostei Muito de Sua Crônica!
"Reduzira, ele, o homem do saco, toda a sua vida. Para caber em seu encardido saco, carregado nas costas."
Para a Reflexão!
Grande Abraço, Jorge
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