quarta-feira, 26 de setembro de 2012

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"O homem do saco"


 

 

Cabia tudo na vastidão do meu medo. E o universo era o saco. Solidão e pânico. Sempre tive medo. Ainda na memória me vejo. Olhos arregalados perseguindo o movimento lento e ameaçador. Ele era como um monstro. Uma fera que espreitava as ruas da minha imaginação de guri.

Tinha olhos profundos e uma barba espessa. Caminhava lentamente carregando o peso de um corpo cansado e maltrapilho. Nas costas o temido saco.

Os discursos que construíam a imagem daquele homem me diziam que era para “pegar as crianças mal educadas”. Era uma ameaça, um risco que nós meninos do Recinto da Viação Férrea temíamos.

Não lembro o nome. E me sinto culpado por isso. É como se tivéssemos definitivamente tirado a humanidade daquele homem. Sim. Era um homem. E isso, agora, já com os meus quarenta e cinco anos, me faz pensar. Havia uma história sob o andar lento e pesado daquela criatura. Uma história que ia muito além de sua figura triste a perambular pelos trilhos da minha memória. História que nós crianças não queríamos conhecer. Não podíamos. Ele era o nosso monstro. Nossa criatura dos sonhos e pesadelos.

Quando queriam nos assustar, diziam que ele ia nos “pegar”. “Olha o homem do saco...” e nós tremíamos.

Reduzira, ele, o homem do saco, toda a sua vida. Para caber em seu encardido saco, carregado nas costas.

As vezes penso que fazemos a mesma coisa. Nossas “pequenas” vidas. Carregadas em nossas malas, nossos computadores, nossos telefones, nossos carros...

Somos um pouco mais “limpos” e vistosos. Mas a pobreza é a mesma. E a velocidade com que movemos nossos corpos, não nos distância muito dos passos cansados do “homem do saco”. Ele era o monstro da minha rua, da minha infância. Nós somos os monstros de nós mesmos.

Em nossas costas, muito bem acondicionado, carregamos o nosso “eu”, nossa identidade, exatamente igual a de todo o resto.

Lembro de ver o homem do saco sentado comendo um pedaço de pão. O tempo era dele. Apenas o tempo. Nada mais lhe pertencia. Só o tempo. Caminhava, sentava, parava, andava, no ritmo que queria.

Os “novos homens do saco” são apenas fluxos. Tão despersonalizados que se confundem nos gosto, atitude, estilo e pensamento. E não podem parar. Jamais podem largar o saco, a mala que carregam sobre os ombros. Pelo contrário. Devem acompanhar o discurso que lhes obriga a sempre “evoluírem”, a sempre “aprenderem mais” a sempre “aperfeiçoarem-se” mais.

A mala, o saco... deve estar sempre cheio. Carregado. Carregado de informação, de conhecimento, de certificados, de capacidades... e a rua se torna o mundo, e o mundo é um movimento de velocidade e não-pertencimento a nada.

Somos sugados, devorados por um espírito que exige sempre mais de nosso corpo e da nossa mente. Até o esgotamento.

Somos avaliados pelo que produzimos. E se não pudermos mais suprir adequadamente os “gostos” e desejos do grande mercado que orienta nossa ética e moral contemporânea, somos literalmente “excluídos”.

 

 

 

1 Comentário

Jorge Xerxes

Ronie Von,

Gostei Muito de Sua Crônica!

"Reduzira, ele, o homem do saco, toda a sua vida. Para caber em seu encardido saco, carregado nas costas."

Para a Reflexão!

Grande Abraço, Jorge