terça-feira, 2 de outubro de 2012

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Compensação - Capítulo V

Ele prosseguiu contanto:
- Vivi nessa casa até completar dezoito anos. Foi nessa época que houve uma grande batida policial nas bocas de fumo do Rio de Janeiro, e meu protetor assustado mudou-se para a Colômbia, país onde tinha um reduto de fornecimento de drogas ainda maior que o do Brasil. Levou-me junto. Lá ele possuía mais empregados, e mais traficantes da pesada, que aqui no Brasil. A essa altura eu já era homem feito. Embora podendo participar de grandes partidas de drogas, o patrão não deixava. Dizia que era melhor ficar de fora. Meu trabalho era comandar um grupo de marginais que garantiam a segurança da fortaleza do patrão. Uma espécie de milícia particular. Tinha toda a confiança do meu protetor. Ele confiava em meus atos como se fosse ele mesmo. Considerava-me como seu filho, pois não tinha nenhum.
Fiquei na Colômbia com meu protetor até os quarenta e cinco anos. Nunca me casei. Sempre que aparecia alguém que me interessasse um pouco mais, o patrão dizia: "Essa vida não tem lugar para mulheres, você tem todas que quiser, pois tem dinheiro, não precisa se casar." E era verdade. Mulheres além de atrapalharem nossas andanças, poderiam ser perigosas. Sempre davam com a língua nos dentes. Os maiores problemas que tínhamos eram com mulheres desgostosas com algum sujeito. Por da cá aquela palha, lá iam denunciar o bando. O patrão sabia disso, e tinha razão.
Um dia, quando todos estavam descansando de uma escaramuça da noite anterior, ouvimos ruídos estranhos e preocupantes. A casa onde morávamos ficava em cima de um morro, com dificílimo acesso por terra. O acesso maior era por ar, com helicópteros que pousavam no heliporto da casa. O barulho que ouvíamos era de helicópteros, e o radar anunciava que eram vários que se aproximavam com rapidez em nossa direção. Foi um alvoroço danado. Todos os capangas correram para seus postos, executando a defesa de emergência diversas vezes treinada. Como sempre eu estava ao lado do meu patrão. Ele deu ordens rápidas a seus assessores de maior confiança, e todos sabiam exatamente o que fazer. Enquanto os homens treinados para a segurança morriam bombardeados pelos helicópteros da polícia, nós, o patrão, seus guarda-costas e eu, descíamos por uma escada que era camuflada atrás de uma estante na sala de leitura, que após a passagem se fechava e nada se via. A luz possuía sensores que acendiam automaticamente ao movimento de pessoas. A escadaria nos levava a um pequeno porto no final do rochedo, há alguns quilômetros da porta onde saímos. A descida pelos intermináveis degraus foi longa. Quando chegamos ao último degrau, o patrão que já era bem velho, sufocava e pedia ajuda. Mas como entre nós não havia nenhum médico, não sabíamos o que fazer. Então o homem me chamou:
- Meu filho! Sinto não tê-lo feito estudar medicina! - e sorria com sua brincadeira - mas sei que não vou conseguir passar por aquela porta. Então, de hoje em diante, você é um homem livre. Tenho muito dinheiro e muitos bens. Os bens acho eu, vão ser todos confiscados pelos governos dos países onde estão.  Mas o dinheiro, esse você pode usufruir. Você nunca matou ninguém, porque nunca o coloquei em aventuras que o arriscassem a isso. Só participou de coisas que não o incriminariam muito. Sua consciência pode ficar em paz. Essa bolsa preta que aí está, tem vinte milhões de dólares, limpos, e são seus. Se eu não morrer, vamos gozar a vida juntos, pois nesse instante deixei de ser o que era. Se eu morrer, leve esse dinheiro da pasta, e aqui está o número de uma conta que está na suíça. Você pode ir lá e pegar o que tem no cofre. Também é seu.  Você foi para mim o filho que nunca tive. Se Deus existe, foi Ele que colocou você em minha vida naquele dia que o encontrei na rua. Fui muito feliz por tê-lo a meu lado.
 A voz dele estava ficando cada vez mais entrecortada, e seus olhos foram perdendo o brilho. Alguns minutos mais, ele sempre apertando minha mão, expirou. Fiquei ali sem saber muito bem o que fazer. E a perda dele estava sendo muito dolorosa, porque ele foi o único pai que realmente tive e a única pessoa que se importou comigo. Por isso, chorei ali abraçado ao corpo inerte da única pessoa que foi realmente minha família. Ele estava morto para eu viver.
Então o capanga que ia na frente como batedor, gritou: -  "Vamos sair. Tem dois barcos a motor lá fora, vamos partir." Então lembrei porque estávamos ali. Precisava tomar uma decisão, e disse: - "O patrão morreu. Venham aqui!" Os que já estavam no barco vieram, pois até aquele momento não haviam percebido o que tinha acontecido. Com a preocupação em tirar o patrão dali, não prestaram atenção no que falávamos ou fazíamos.
Falei: "Precisamos enterrá-lo. Não vamos deixá-lo aqui nas escadas." Rapidamente os homens acostumados a seguir ordens, e aceitando-me como patrão no mesmo instante, saíram para a praia. Encontraram um local ao lado do rochedo e aí cavaram um buraco, não muito fundo, mas suficiente para colocar o corpo do homem que fora meu escudo na vida. Quando o corpo caiu no buraco com um som oco, deixei ir junto minha vida passada: treze anos de fome e frio e os trinta e dois anos de conforto com meu patrão.
Nesse instante nasceu outra pessoa, o verdadeiro ser humano que Deus colocou nesse planeta, e que agora iria cumprir outra missão.

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