Ele
prosseguiu contanto:
-
Vivi nessa casa até completar dezoito anos. Foi nessa época que houve uma
grande batida policial nas bocas de fumo do Rio de Janeiro, e meu protetor
assustado mudou-se para a Colômbia, país onde tinha um reduto de fornecimento
de drogas ainda maior que o do Brasil. Levou-me junto. Lá ele possuía mais
empregados, e mais traficantes da pesada, que aqui no Brasil. A essa altura eu
já era homem feito. Embora podendo participar de grandes partidas de drogas, o
patrão não deixava. Dizia que era melhor ficar de fora. Meu trabalho era
comandar um grupo de marginais que garantiam a segurança da fortaleza do
patrão. Uma espécie de milícia particular. Tinha toda a confiança do meu
protetor. Ele confiava em meus atos como se fosse ele mesmo. Considerava-me
como seu filho, pois não tinha nenhum.
Fiquei
na Colômbia com meu protetor até os quarenta e cinco anos. Nunca me casei. Sempre
que aparecia alguém que me interessasse um pouco mais, o patrão dizia:
"Essa vida não tem lugar para mulheres, você tem todas que quiser, pois
tem dinheiro, não precisa se casar." E era verdade. Mulheres além de
atrapalharem nossas andanças, poderiam ser perigosas. Sempre davam com a língua
nos dentes. Os maiores problemas que tínhamos eram com mulheres desgostosas com
algum sujeito. Por da cá aquela palha, lá iam denunciar o bando. O patrão sabia
disso, e tinha razão.
Um
dia, quando todos estavam descansando de uma escaramuça da noite anterior,
ouvimos ruídos estranhos e preocupantes. A casa onde morávamos ficava em cima
de um morro, com dificílimo acesso por terra. O acesso maior era por ar, com
helicópteros que pousavam no heliporto da casa. O barulho que ouvíamos era de
helicópteros, e o radar anunciava que eram vários que se aproximavam com
rapidez em nossa direção. Foi um alvoroço danado. Todos os capangas correram
para seus postos, executando a defesa de emergência diversas vezes treinada.
Como sempre eu estava ao lado do meu patrão. Ele deu ordens rápidas a seus
assessores de maior confiança, e todos sabiam exatamente o que fazer. Enquanto
os homens treinados para a segurança morriam bombardeados pelos helicópteros da
polícia, nós, o patrão, seus guarda-costas e eu, descíamos por uma escada que
era camuflada atrás de uma estante na sala de leitura, que após a passagem se
fechava e nada se via. A luz possuía sensores que acendiam automaticamente ao
movimento de pessoas. A escadaria nos levava a um pequeno porto no final do
rochedo, há alguns quilômetros da porta onde saímos. A descida pelos
intermináveis degraus foi longa. Quando chegamos ao último degrau, o patrão que
já era bem velho, sufocava e pedia ajuda. Mas como entre nós não havia nenhum
médico, não sabíamos o que fazer. Então o homem me chamou:
- Meu filho! Sinto não
tê-lo feito estudar medicina! - e sorria com sua brincadeira - mas sei que não
vou conseguir passar por aquela porta. Então, de hoje em diante, você é um
homem livre. Tenho muito dinheiro e muitos bens. Os bens acho eu, vão ser todos
confiscados pelos governos dos países onde estão. Mas o dinheiro, esse você pode usufruir. Você
nunca matou ninguém, porque nunca o coloquei em aventuras que o arriscassem a
isso. Só participou de coisas que não o incriminariam muito. Sua consciência
pode ficar em paz. Essa bolsa preta que aí está, tem vinte milhões de dólares,
limpos, e são seus. Se eu não morrer, vamos gozar a vida juntos, pois nesse
instante deixei de ser o que era. Se eu morrer, leve esse dinheiro da pasta, e
aqui está o número de uma conta que está na suíça. Você pode ir lá e pegar o que
tem no cofre. Também é seu. Você foi
para mim o filho que nunca tive. Se Deus existe, foi Ele que colocou você em
minha vida naquele dia que o encontrei na rua. Fui muito feliz por tê-lo a meu
lado.
A voz dele estava ficando cada vez mais
entrecortada, e seus olhos foram perdendo o brilho. Alguns minutos mais, ele
sempre apertando minha mão, expirou. Fiquei ali sem saber muito bem o que
fazer. E a perda dele estava sendo muito dolorosa, porque ele foi o único pai
que realmente tive e a única pessoa que se importou comigo. Por isso, chorei
ali abraçado ao corpo inerte da única pessoa que foi realmente minha família. Ele
estava morto para eu viver.
Então
o capanga que ia na frente como batedor, gritou: - "Vamos sair. Tem dois barcos a motor lá
fora, vamos partir." Então lembrei porque estávamos ali. Precisava tomar
uma decisão, e disse: - "O patrão morreu. Venham aqui!" Os que já estavam
no barco vieram, pois até aquele momento não haviam percebido o que tinha
acontecido. Com a preocupação em tirar o patrão dali, não prestaram atenção no
que falávamos ou fazíamos.
Falei:
"Precisamos enterrá-lo. Não vamos deixá-lo aqui nas escadas."
Rapidamente os homens acostumados a seguir ordens, e aceitando-me como patrão
no mesmo instante, saíram para a praia. Encontraram um local ao lado do rochedo
e aí cavaram um buraco, não muito fundo, mas suficiente para colocar o corpo do
homem que fora meu escudo na vida. Quando o corpo caiu no buraco com um som
oco, deixei ir junto minha vida passada: treze anos de fome e frio e os trinta
e dois anos de conforto com meu patrão.
Nesse
instante nasceu outra pessoa, o verdadeiro ser humano que Deus colocou nesse
planeta, e que agora iria cumprir outra missão.
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