quarta-feira, 3 de outubro de 2012

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Pra quem tem cabeça feita

O candomblé é religião anímica original dos povos nativos da África como são, por exemplo, as nações nagô, ketu, jeje, dentre outras. O iorubá é a língua africana tradicional de onde advém a maioria dos termos usados no candomblé. Existem características próprias e nuanças que distinguem o candomblé nagô, do candomblé ketu, do candomblé jeje, dos candomblés de outras nações.

Esses diferentes candomblés disputam axé, que é sinônimo de poder, de vitalidade e de fundamento; sendo diametralmente opostos á ideia do sincretismo. Isto é, quanto mais puro, original, de raiz é o fundamento da casa, ou ilê, e do pai de santo, maior o seu axé. Nessas disputas de poder entre as casas é comum xoxar ou a xoxação, que consiste em maldizer, enfraquecer o outro, torná-lo sem axé. É no chão do ilê, no chão da casa de santo, que se encontra armazenado o seu axé. Awo é o segredo – conhecimento e fundamento – que é transmitido nos cultos, no boca á boca, pelo pai de santo, ou dos ebomis para os abiãs.

Sendo o candomblé uma religião anímica, admite orun-aiye, a ligação do plano espiritual com o mundo físico, tudo o que existe no orun coexiste no aiye. Aiye é o mundo físico, sendo orun o plano espiritual. Os orixás das nações nagô e ketu – equivalentes aos voduns do candomblé jeje – são semideuses ou divindades, também chamados de santos, representações das potências da natureza, entidades sobrenaturais com traços psicológicos (arquétipos) distintos, criados pelo Deus supremo, por sua vez denominado Olorun. Estes orixás, que habitam orun, têm grande influência sobre os acontecimentos do plano físico, ou aiye.

Segundo consta, existem centenas de orixás. Dentre os mais conhecidos, pode-se citar: Oxalá, orixá do branco, da paz, da fé. Ogum, orixá da guerra, deus da sobrevivência. Oxóssi, orixá da caça e da fartura. Exu, orixá guardião dos templos e das casas, passagens e encruzilhadas, mensageiro divino dos oráculos. Oxumaré, orixá do arco-íris e da chuva, dono das cobras, o orixá das transformações. Xangô, orixá do fogo e do trovão, protetor da justiça. Ossaim, orixá das folhas sagradas, que junto com Oxóssi protege as matas e os animais. Obaluaiyê, orixá das doenças e das pragas, o orixá da cura. Oxum, orixá feminino dos rios, do ouro, deusa das riquezas materias e espirituais, dona do amor e da beleza, protege os recém-nascidos. Iemanjá, orixá feminino dos mares e limpeza, mãe de muitos orixás; dona da fertilidade feminina e do psicológico dos seres humanos. Oyá ou Iansã, orixá feminino dos ventos, dos relâmpagos e das tempestades; também é a orixá das paixões.

De acordo com o candomblé, como os santos têm influência no quotidiano dos humanos, é importante estabelecer a aliança do orixá com a pessoa, o iaô. No ritual de iniciação no candomblé, ou iaô, o aspirante – até então denominado abiã – é raspado; i.e., o abiã tem a cabeça raspada, a pessoa e seu orixá são feitos; diz-se também que fulano é feito no santo, fazer o santo, na feitura da cabeça.

A partir do iaô, a cerimônia de feitura da cabeça, o ori, que é o centro da cabeça, passa a ser habitado pelo orixá e a aliança é estabelecida. Mas para isso, é necessária a preparação anterior do abiã. Essa preparação dá-se pela sua participação nas casas de culto; pelas suas oferendas aos orixás, os ebós, que são rituais mágicos; ou ainda através do bori, que significa dar de comer ao ori, ou dar de comer á cabeça.

Esse longo processo, a feitura, a fabricação do santo e da pessoa, diz respeito ao desvelar do enredo individual. Assim, cada pessoa tem o seu próprio enredo, que vai sendo forjado com o progressivo estabelecimento de laços com os seus legítimos orixás. Para orientar e caracterizar a senda do indivíduo o pai de santo pode valer-se da comunicação direta com os orixás, através do transe, onde ele é possuído pelo orixá, ou por outros meios de comunicação com os santos.  

O jogo de búzios é o mais comum dentre esses oráculos, ou meios de comunicação com os orixás. Este consiste na leitura da conjunção de dezesseis odus. Odu é o elemento binário de comunicação; caracterizado pela concha, búzio, botão ou semente; que pode apresentar-se aberto ou fechado, quando jogado sobre a mesa. Da configuração desses dezesseis odus, entre abertos e fechados, resultam 65536 possibilidades de leitura do oráculo, que estão ligadas ao mesmo número de versos constantes no awo, que é o segredo, também conhecimento e fundamento do candomblé. Logo, o jogo de búzios não é encarado como mera adivinhação, mas um canal legítimo de comunicação com as potências ocultas da natureza, que são representadas pelos arquétipos dos orixás.

Retornando aos possíveis enredos da pessoa, estes são os mais variados, como são as potencialidades individuais. Alguns podem vir a serem ogãs (homens) ou equedes (mulheres), aqueles iniciados que nunca serão possuídos pelo orixá; diz-se que os ogãs e as equedes nasceram sete anos antes dos rodantes. Já o rodante é a pessoa que é possuída pelo orixá, aquele que vira no santo, que tem o orixá assentado. Olori é o orixá da pessoa, o senhor do ori, o senhor da cabeça. Porém, com o tempo, a pessoa pode ter outros orixás assentados, o que aumenta ainda mais o seu axé. Junto ou oju ori é o orixá ajudante; e carrego é o terceiro orixá. Finalmente, ebomi é a pessoa com pelo menos sete anos de raspado, da sua iniciação ou iaô, já pronta para ter os seus próprios filhos de santo.

Ref.: Carmem Opipari, O Candomblé: Imagens em Movimento - São Paulo - Brasil, Editora da Universidade de São Paulo, 2009.


1 Comentário

andre albuquerque

Jorge: pelo visto, o candomblé manteve bem forte o animismo que está na aurora de muitas religiões (Mircea Eliade estudou um bocado isso);uma singularidade : esse conhecimento mantido em sua integridade, até nos locais onde houve uma leitura sincrética com outras religiões,talvez o caso do Brasil.Um achado no seu texto: a determinação do número de combinações no oráculo umbandista, que me faz lembrar o milenar I Ching e seus hexagramas,uma estrutura binária e não menos complexa.Excelente texto.Forte abraço.