Eu não tinha um emprego. Nem precisava.
Nem queria. Eu era um escritor estabilizado e conhecido e premiado e lido
mundialmente. O dinheiro me procurava. Telefonemas e e-mails e recados,
telegramas e contatos, me encomendando histórias, orelhas, quartas-capas,
prefácios, críticas, crônicas, qualquer-coisa-pra-colocar-no-quadro-de-pensamentos-do-meu-novo-suplemento-literário-no-jornal,
entrevistas-com-as-mesmas-perguntas-de-sempre. Eu só não fazia horóscopo por
que nunca propuseram. Tinha como ajudante um agente argentino radicado no
Brasil. Ele me servia de intermediário. Escolhia pra mim os melhores trabalhos,
cuidava da minha carreira melhor do que eu. Ricardo, o seu nome, mas eu sempre
o chamava de Pablo. Não sei por quê.
Era assim que eu conseguia pagar as contas
e comer. Não era preciso muito.
Eu vivia, afinal, sozinho e quase sem
nada. Um eremita, um misantropo. Eu não tinha nenhuma raiz naquela cidade ou em
qualquer outra. O máximo de contato que eu tinha com o mundo de fora da minha
concha solitária era algum relacionamento com uma ou outra turista que eu nunca
mais tornava a ver – e talvez exatamente por isso.
Eu não estava preparado pra amar o que não
saísse de mim.
Nem queria.
Tudo que eu queria era fazer o que por
cinco anos eu não conseguia. Eu só queria escrever.
E então ela começou a gritar. Ela queria
nascer.
Eu sempre tinha saído pouco de casa. Mas
agora eu quase não dava as caras na rua. Ela não deixava. Aquela mulher emergiu
junto comigo daquele mergulho. Eu resgatei aquela pequena menina. E tirei do
fundo do mar aquela mulher. Ela queria nascer, me dominava. Então eu me
debruçava sobre as teclas até que ela tivesse uma forma, um rosto, um nome, uma
vida. Mas era difícil. Ela era muito difícil.
Dela eu não sabia muito. Só que era bonita,
era muito.
Dessa vez, eu pensava, ela não vai se esconder.
Eu sabia, ou queria acreditar, que aquela
mulher – que eu tinha procurado por muitos anos, cidades, países, sem nunca
achar, que eu tinha tentado jogar nas páginas de algum livro meu –, que aquela
mulher finalmente se mostrava. Gritava: aqui!, me resgate!
As mulheres que eu tinha criado até então
não quiseram sê-la. Elas foram rumando (porque elas sempre têm muito poder
sobre mim) prum outro caminho, outro rosto, outro destino. E o que primeiro desejei
pro destino delas sempre se tornou secundário, coadjuvante nas histórias que me
nasciam.
Ela gritava agora, me dizia que não queria
mais ser figurante. Ou era isso o que eu queria entender. Porque eu sempre
tinha esperado muito pelo momento em que ela subisse o abismo.
Eu sabia que, quando ela viesse, eu não
precisaria mais emergir das minhas páginas.
Porque o meu mundo, eu sabia, era melhor
do que este.
E deste só ela poderia me salvar.
Para, Jaime, eu pensei em frente ao
computador, olhando pras páginas de onde eu tentava fazê-la nascer. Para,
Jaime, de acreditar que os mundos que você cria são reais, eu dizia em voz alta
a mim mesmo (minha voz se misturando às notas do violão daquele rapaz sempre
tocando lá fora), de achar que você ainda pode ter a mulher que só você vai
poder inventar – e ela será, me aconselhei silábico, a-pe-nas i-lu-são. Para de
ficar mergulhando fundo assim na poesia e de nutrir a ilusão de que as coisas
podem ser como nos livros. Nada vive nem morre como nos livros.
Nos livros, tudo é mais real.
Pausa longa. Minha voz ecoando no meu
quarto quase vazio, até morrer abafada pelo rapaz: You make me weep.
Então continuei escrevendo assim:
1 Comentário
Milena,
Acompanhando e Gostando!
"Eu resgatei aquela pequena menina. E tirei do fundo do mar aquela mulher. Ela queria nascer, me dominava."
Um Beijo! Jorge
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