quinta-feira, 15 de novembro de 2012

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O farol




 O velho Gaspar era o sujeito mais solitário do mundo , disso eu não tinha a menor dúvida .  E o farol: convento e bordel da alma do cara. Viúvo aos cinqüenta anos, os filhos em debandada geral : sem grana e sem gana , reduzido a pentelhação obrigatória aos domingos . E percebeu isso , percebeu sim . Surgiu faroleiro, ninguém sabe como nem por obra de que ou de quem ; somente porque . Ei- lo , visto meio de lado .
 Os concursos para faroleiro são escassos , aqui na Capitania ;faróis parecem tomar o mesmo destino daqueles elefantes brancos, grandes e em extinção . Vi na TV , outro dia, um farol removido sobre trilhos de sua posição original , num país da Europa ; bizarro demais, o troço andou uns cem metros em cima de uma parafernália de eixos , molas, macacos hidráulicos, o escambau . Atingida a distancia segura da falésia, (é, ele estava quase despencando lá de cima) foi reinstalado - espero que tenha sido assim mesmo. Então, farol é um troço cheio de nove horas , não é mesmo ?
Imagino que viagens o Gaspar fez de seu farol , olhando aquele mundo sempre velho e sempre diferente , as passagens dos navios ; com o tempo talvez fizesse algum tipo de amizade com as embarcações ;com as tripulações , duvido , mesmo se pudesse . Prezava muito sua solidão. Não parecia esperar nada do mundo nem de ninguém . Dizia que seus salários se escondiam no fundo das gavetas, para não ser vistos . Bobagem . Que necessidades teria ele ? Vez por outra recebia uma inspeção da Capitania dos Portos e os caras nunca reclamaram lhufas de nada : tudo certo, limpo, espanado , arrumado , nenhum barco perdido ou á deriva na área do coroa . E tinha sorte.
Ele devia saber mesmo das coisas, ter aquela inteligência alimentada pelo lado animal e peixe , que vai assumindo a pessoa que mergulha inteira naquilo tudo .E ele mergulhou , ah , se mergulhou ! A essa altura vocês devem estar se perguntando quem sou eu, deitando toda essa falação sobre Gaspar e o farol da Prainha. Chamem – me Ubiratan,
do  jeito daquele cara da baleia branca, que também pedia chamem-me ,mesmo nessa história mais simplesinha ,mais pra golfinho que baleia  . Uma vez por mês eu levava suprimentos para o farol e para o velho . Papeávamos um bocado , conferíamos o material enviado e partilhávamos uma cachaça do Rio Grande do Norte, que sabe Deus como ia parar ali , naquele fim de mundo , tão gostosa que a imaginei um grande vinho que tivesse decaído, feito anjo , reencarnando ou reliquidificando (pouco importa) feito cachaça ; quando falei isso pra ele, o velhote riu um riso amarelo de nicotina e alcatrão , combinando com o amarelo dos dedos e disse que vinho era vinho e cachaça era cachaça e que um troço chamado de metempsicose não se aplicava ás bebidas , que tinham um espírito próprio .
Perguntei- lhe se já fora psiquiatra , ele riu de novo , um riso de enfisema e engraçado ao mesmo tempo, pois parecia sair da barriga dele , feito um boneco de borracha , quando você o fura e fica apertando , sabe ? Não me diga que nunca teve um brinquedo de borracha , que eu digo que você não vale o que o gato enterra e que não teve infância ou qualquer coisa que lembre que você passou pela infância e não viu. Entre uma tossida e outra, zoou com minha cara , dizendo que nossa conversa , tava parecendo um diálogo dos irmãos Marx : gente da qual nunca ouvi falar ; já me bastava o cara barbudo que escreveu a bíblia comunista .
Aquela história toda de metempsicose era meio esquisita ; talvez a solidão tivesse aloprado o cara ; mas não parecia , falou-me que metempsicose não tinha nada a ver com loucura e sim com a transmigração da alma (outro calo no meu cérebro) .Olhei pra cara dele ,enrugada, engelhada num engelhamento bonito , que passava uma moral estranha para as pessoas ,quero dizer, uma moral meio mortal , feito a dos bruxos, mas Gaspar era só um faroleiro que o GPS estava quase para aposentar. Virou outro copinho daquela aguardente e ficou a olhar pro horizonte , sem barcos ou navios , só água e algumas gaivotas ; se sua camisa tivesse botões, diria que viajava com os seus botões.
A nicotina brilhante nas unhas fazia-o parecer nascido daquele jeito, com aquelas unhas amarelo – verniz . Falei isso pra ele ; ele riu , agora só da boca pra fora , um riso simples, raso.
Parecia vestir a mesma roupa todos os dias ou melhor, não sei se ele vestia aquele jeans e aquela camisa de gola rolê que lembrava os cantores da jovem guarda , sacumequié : velhas tardes de domingo, etecetera ,etecetera , apenas para receber os suprimentos ; espécie de traje alinhado ,sei lá.Uma  vez , tiramos uma foto juntos , com o mirante do farol ao fundo e dei pra ele , que colou na porta da geladeira, onde guardava a cachaça . Desconfio que os cigarros eram seu referencial interno de tempo ; quase sempre meia hora entre um e outro; não usava relógio além daquele do farol .E aquela cicatriz no peito ? Lembrança de uma facada , confessou rindo e olhando minha cara incrédula ; sentia - me incapaz de imaginá-lo esfaqueado , simplesmente por falta de alguém suficientemente louco ou blasé para fazê-lo .Isso , na única ocasião em que o ouvi queixar-se do calor e despir a camisa , ali na Prainha .
Os olhos azuis do cara ás vezes mudavam de cor quando ele descrevia as coisas que já tinham pintado na sua área, a maioria bobagens , golfinhos mortos que encalharam nos escolhos ou de quando um barco vazio espatifou- se contra as pedras do seu pequeno reino.Imagino zilhões de neurônios zumbindo na imaginação dele e coisa e tal .Raro o amor da solidão pelo solitário, pensei .O sujeito é meio que escolhido por ela , num jogo complicado de afinidades e desafinidades .
Ele nunca falava da família ; o que eu sabia , era pelo pessoal de terra , da Capitania , que tinha a ficha dele e parecia aproveitar a chance de ter o que seria um tipo doido manso,inteligente, que dava conta do recado , vivendo a vida sobre um farol de escolhos, escutando o resto da vida o barulho do mar e limpando cocô de gaivota das redondezas e jogando no mar , como se alimentasse aquela criatura líquida que um dia abandonaria antes que o mar o percebesse já distante e solitário de outro jeito, de outra forma e com sede de outro lugar , não mais farol .
Outro dia, convidou-me a entrar no seu quarto durante uma conversa sobre mapas ; vi uma figura enorme e redonda na parede , segundo ele , uma mandala ; tinha uma porrada de livros antigos, muito manuseados, pareciam coisa comprada em sebo chinfrim, dezenas de reproduções de antiqüíssimas cartas de navegação e mapas, muitos mapas pelas paredes, uma incrível carta de navegação atribuída a Marco Pólo ; mostrou – me o Diário de Viagem de um Filósofo , de um tal  Conde Von Keyserling , do qual nunca ouvi falar   (ia dizer – lhe isso , mas lembrei que nunca fui muito bom com livros nem eles comigo),  afirmando que dar a volta ao mundo era a melhor forma de conhecer-se a si mesmo.
Gaspar tinha o corpo no mar e a cabeça nas nuvens , lendo aquelas coisas , ali naquela solidão azul , falando da necessidade do homem de se escutar, de resgatar o que tinha dissipado do Eu ao longo do caminho da vida . Tempo para ouvir a si mesmo e para ouvir o mundo .Gaspar lembrava alguém a quem o mundo devia muita coisa , muita alegria , muita tristeza ,muita paz ,muito pesar ,tudo zerado na cinza do dia a dia ; o homem sem cor que ao perceber a falta de cor , resolveu ficar sozinho para absorver o mundo e absorver-se nele . Passaram – se anos, ficamos amigos, na medida em que era possível alguém sentir – se amigo de figura tão estranha e admirável.
Lembro de sua despedida , seu olhar líquido , o sorriso benfazejo , mochila ás costas , entrou na minha sala e fez um arremedo engraçado de continência , levando dois dedos á testa ; falou-me que sua missão estava cumprida , perguntei –lhe para onde ia, respondeu-me não saber ainda . Seguiu em frente , batendo levemente com o punho nas paredes do corredor , após um abraço de despedida distraído e fugaz, feito ele.
Uma tarde , Flavinha , da Tesouraria ,mostrou-me numa revista aberta , uma foto do Gaspar; o texto informava dos cem anos do nascimento do escritor Samuel Beckett. Perguntou – me se não era o Gaspar . Gelei da cabeça aos pés: a mesma camisa de gola rolê , a calça jeans que parecia saída de uma garrafa ; li a reportagem ,esbarrei no relato da facada (agressor desconhecido,em Paris ,1938 , afirmava a revista) e respondi que não, era apenas uma incrível e notável semelhança. Gaspar nunca esperou nada ou ninguém , nem mesmo esse tal de Godot , citado na reportagem .Ela riu feito uma doida e beijou - me entre os olhos.




                                                      





4 comentários

Marcelo Pirajá Sguassábia

Quando vi a foto, sabia que o sujeito não me era estranho. No fim do texto, vi que tinha razão. Que notável quadro, Gaspar é quase um velho conhecido para quem lê. Gosto do jeito como você vai deixando que o farol narrativo ilumine ou esconda essas suas irrealidades. Muito, muito bom, André.

andre albuquerque

Marcelo, grato pelo comentário.A interação permite que haja um feed-back , a meu ver,muito positivo,.Afinal de contas, não somos ilhas . Forte abraço .

Jorge Xerxes

André,

Gostei Muito do Texto!

"Surgiu faroleiro, ninguém sabe como nem por obra de que ou de quem ; somente porque . Ei- lo , visto meio de lado ."

"...ele riu de novo , um riso de enfisema e engraçado ao mesmo tempo, pois parecia sair da barriga dele , feito um boneco de borracha , quando você o fura e fica apertando , sabe ?"

"O sujeito é meio que escolhido por ela , num jogo complicado de afinidades e desafinidades ."

"Gaspar tinha o corpo no mar e a cabeça nas nuvens , lendo aquelas coisas , ali naquela solidão azul..."

Um Grande Abraço! Jorge

andre albuquerque

Jorge,grato pelo olhar e comentário; atribuem ao Mário de Andrade a frase "...quem escreve e mostra,mostra por vaidade,quem escreve e não mostra, não mostra por vaidade", não sei se a informação procede, mas o comentário construtivo,mesmo lembrando que já fizemos coisa melhor, é mais que bem vindo ,se o elogio é bem fundamentado,melhor ainda (em minha opinião.)Forte abraço.