sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

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DEPOSTO SOBRE O ABISMO - 8



Numa das muitas prateleiras das minhas muitas estantes, havia os livros inteiramente meus, aqueles que eu havia escrito. Meu pretexto pra enganar a mim mesmo era tê-los ali pra não repetir um título já usado. Afinal, eu não queria nunca mais retornar àqueles mundos, àqueles universos paralelos fechados pra sempre como os deixei. Mas não se pode fugir do caos.
Eu caminhava em círculos pelos meus cômodos e com um esforço supremo (porque ela era muito difícil) ela ia, aos poucos, ganhando forma, mas não tinha nome nem rosto nem vida. Ela só tinha olhos, verdes, sem alma, e muito vivos. Como os da menina que eu tirei do mar.
Porque aquela mulher também tinha saído do mar.
E era bonita. E forte, como a menina que eu tirei do mar.
Decidi sair de casa, minhas bebidas tinham acabado, meus cigarros mentolados também. Dei com o jovem tocando seu violão na praça da torneira que insistem em chamar de chafariz. Ele me cumprimentou, como se me conhecesse. Fumava calmo o seu cigarro, ele era sempre muito calmo. Pensei em pedir um, mas fui embora. Ele voltou a tocar. You make me weep...
Rumei pra um mercadinho conhecido, fui comprar qualquer coisa alcoolicamente dolorosa que me ajudasse a abrir os meus portões praquela mulher, a me debruçar no abismo e lhe estender a mão. Comprei também um maço de mentolados pra fumar ao escrever (já tinha desistido de tentar parar. De fumar e de escrever).
Mas o mercado estava fechado. Merda! É domingo!, exclamei parado à porta. Turistas perdidos passando e me olhando surpresos. Pela atitude, não pelas roupas pretas ou pela pele branca, porque eles devem (como todos os turistas, perdidos ou não, ainda hoje o fazem) ter acreditado que eu era um deles, perdido também. Não estavam errados.
Caminhei a esmo, flashes de um passado que eu não vivi me cruzando a mente. Um velho triste, uma jovem morta, uma mulher rica, um homem doente, um carro vermelho, uma moça ferida. Quando voltei a mim, vi a placa da loja à minha frente. Um personagem de Machado, ou de Dostoievski, guiado pelas pernas – eu tinha ido parar no lugar exato onde eu poderia encontrar uma garrafa, ou várias, de bebida, e um maço, ou vários, de cigarros mentolados. Eu estava numa cachaçaria grande e conhecida do centro histórico de Paraty.
Parei a escolher o que ia levar, fiquei olhando as prateleiras sem muita atenção. O velho guarda rancor da filha. Muitos licores artesanais. A jovem, dizem que se matou. De todos os sabores. A mulher tem tudo, mas nada lhe basta. Escolhi três. O homem queria realizar todos os sonhos. E a aguardente da casa. Mas percebeu que o prazer acaba. Fabricada pelo dono da loja. O carro saiu cantando pneu. Confiei, não sei por que, que fosse boa. Correu, correu, correu. Peguei três garrafas também. E atropelou a moça.
Tomei um susto com a cena, quase pulei pra trás.
Pensei assim: ela está me contando sua história.
Eu estava quase sem mãos pra segurar tantas garrafas. Levei-as com dificuldade até o balcão, atrás do qual um senhor de cabelos começando a branquear estava de costas, ordenando garrafas numa adega grande no chão. Ele se virou e, em me ver ali parado esperando ser atendido, se levantou ágil e veio até mim, com um bom dia vivo nos lábios encobertos por um vasto bigode gris, um cheiro de álcool saindo debaixo do bigode gris, quem sabe de tanto testar a qualidade da aguardente que fabricava.
Boas escolhas, ele disse que eu tinha feito, e tentou puxar assunto sobre o tempo incomum de julho em Paraty. Mas não consegui responder, enquanto digitava a senha do cartão de débito e recebia o comprovante e o muito obrigado do dono da loja. Eu estava intrigado. Ele me lembrava alguém. Muito nitidamente, como se eu o tivesse visto havia muito pouco tempo antes. Mas eu nunca o tinha visto.
Saí da cachaçaria com duas sacolas enormes de bebidas. Esqueci de pedir o cigarro no balcão, tão estupefato eu tinha ficado com aquela semelhança ainda inexplicada do dono da loja. Então, pensei em dar meia volta e pedir um maço de mentolados, mais pra rever aquele senhor, fitá-lo muito até descobrir de onde o conhecia, que realmente por vontade de fumar. E em pensar assim tive muita vontade de fumar.
Dei meia volta, entrei na cachaçaria novamente e rumei pro balcão, atrás do qual acreditei que ele estaria, ainda agachado, a arrumar as garrafas de bebida na adega. Mas ele já não estava lá. Um jovem de blusa quadriculada, suspensórios e boina ocupava seu lugar, de costas pra mim, colocando garrafas empilhadas na grande adega da parede. Eles eram parecidos, o rapaz e o senhor. Deviam ser pai e filho.
Só então notei em torno o cheiro de roupa guardada, a luz sépia e amarela no ambiente. Olhei em volta. As lâmpadas, bem antigas, estavam todas apagadas. Me senti personagem de um filme velho, prestes a incinerar no projetor.
Pedi um maço de mentolados pra um atendente, paguei e saí.
A claridade do sol me fez fechar os olhos. Senti forte a maresia vindo da praia. Tonteei, high definition.
Por três dias inteiros, fumei muito, bebi muito, pensei muito. Uncanny strange dejá-vu: um velho triste, uma jovem morta, uma mulher rica, um homem doente, um carro vermelho, uma moça ferida...
Eu pensava nesses retalhos como se me lembrasse. Se eu costurasse, talvez a colcha tivesse o rosto dela, ela que tanto queria nascer de mim. E que me gritava aquelas cenas, restos da memória de uma vida que não era minha.
E por três dias eu pensei naquele senhor, pra que eu me lembrasse: de onde o conhecia, onde eu poderia tê-lo visto antes daquele dia na loja de bebidas. Mas eu não lembrava. Eu não lembrava.

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