quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

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O DEDÉ






Foi revendo “Forrest Gump” que lembrei do Dedé, o sumido porém inesquecível Dedé. Estava ao seu lado no cinema, na época do lançamento do filme, quando num rompante inspiradíssimo ele lavrou a versão tupiniquim da filosofia do anti-herói americano: “A vida é como uma empadinha de rodoviária: a gente nunca sabe o que vai encontrar”.

Nada do que o Dedé dissesse era levado a sério. Por mais sérios que fossem seus enunciados e máximas.
Consta que foi por volta de 1978 que o Dedé cismou que o tempo estava passando mais rápido. Alardeava aos quatro ventos a singular constatação, dispunha-se a chamar a comunidade científica pra comprovar por A+B a sua tese. Tinha toda uma teoria, amparada por equações complicadíssimas, cálculos quânticos e dízimas periódicas. Porém, mais rápido ou não, o tempo passou e a coisa ficou por isso mesmo.

Uma figura, o Dedé. Pelo seu jeitão aloprado, muitos o chamavam de Lelé. Que maldade.
Líder nato, amava palavras de ordem e gritos de guerra. Adivinha, no colégio, quem era o presidente do grêmio, o chefe da fanfarra, o representante de classe, o orador da turma? Lógico, o Dedé. Na faculdade, estampava e vendia nos intervalos das aulas camisetas do Che, da plantinha de Cannabis e contra o imperialismo ianque.

Se havia alguém perito em arrumar uma confusão, esse alguém era o Dedé. Sem querer, espalhava boatos e insultos difamantes, semeando a discórdia por onde passasse. Aprontava todas e, quando o tempo fechava, escafedia-se em meio à turba se estapeando. O Dedé sumia com a leveza e a rapidez de um ninja. Aquele monte de amigos batendo e apanhando por causa dele, e ele lá, rindo e guardando distância segura do quiproquó.

O Dedé era também um diletante gastronômico, e suas panelas assistiam às combinações mais esdrúxulas – macarrão doce, sorvete de queijo com cobertura de azeite de oliva e polvilhado com orégano, pato ao molho de fanta uva.

São muitas as recordações. Devia ter umas duas semanas de casado, praticamente ainda em lua de mel, e quem me aparece em casa, de mala e cuia? Adivinhou de novo, leitor: o Dedé. Disse que ia ficar só uns dias. E uns dias, para o Dedé, eram muitos. Mais exatamente, 94.
Assaltava a geladeira sem cerimônia nenhuma, esparramava-se no sofá da sala para ver televisão e urinava com a porta do banheiro aberta.

O ecletismo era sua marca registrada no âmbito profissional. Chegou a gerenciar simultaneamente um bingo para a terceira idade, um serviço de telemensagem e um quiosque de tapioca.

Há cerca de dois anos, aconteceu aquela que seria a grande guinada de sua vida. Com a pompa que a circunstância exigia, abriu as portas do “Hair Fashion by Dedé”. Portas que foram fechadas antes mesmo da tesoura de cabeleireiro cortar a fita inaugural, por não ter sido expedido o alvará da prefeitura. Nunca testemunhei tão retumbante fracasso. Mais de 150 convivas, entre autoridades, convidados e representantes da imprensa local, degustando sidra vagabunda e assistindo o fiscal lacrar o natimorto salão de beleza.

O sucesso do Dedé com as mulheres era inversamente proporcional à sua desenvoltura como empreendedor. Tinha todas as que punha em sua alça de mira. Incluindo a filha de um promotor de justiça, com a qual chegou a noivar e a quem dedicou uma canção de relativo sucesso na época, finalista de um festival em Santa Rita do Passa Quatro e terceiro lugar num outro em Ijuí.
Não obstante essas heroicas conquistas, o pai da moça se opunha ao relacionamento, subestimando seus feitos e julgando-o indigno da filha.
Afrontado e ávido por um revide, Dedé foi à luta e um mês mais tarde esfregou na cara do promotor uma medalhinha de menção honrosa no 12º PIC - Piraporinha in Concert, e o cheque de R$ 75,00 a que fez jus.

Convertido a uma seita pentecostal, passou a levar uma vida regrada e produzia, em sociedade com um cunhado, pesos de porta com grandes figuras bíblicas, como Maomé, Isaac e Matuzalém. Mas foi à bancarrota ao ter um contêiner de Isaacs devolvidos. O comprador alegou que os Isaaquinhos rechados de areia trajavam suspensórios, artefatos que ainda não estavam em voga naqueles idos distantes.

Assim era o Dedé. Esse ser que não existe.



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http://www.publicdomainpictures.net/view-image.php?image=19999&picture=homem-triste-e-chuva">Homem triste e chuva</a> por George Hodan



Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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2 comentários

andre albuquerque

Bela narrativa sobre um "tipo inesquecível";imaginação e estilo na composição de um personagem de muitas nuances e de promissor futuro,espero.Forte abraço.

Marcelo Pirajá Sguassábia

Elogio, vindo de um mestre da pena como você, é benção. Valeu, André.