sábado, 15 de dezembro de 2012

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O senhor cinzento, Rui Tinoco


No café, durante o jogo, o senhor Cinzento transformava-se em verde. Agitava-se na cadeira, ingeria rapidamente os mais agressivos álcoois. Por vezes parecia até pontapear a bola. A perna direita sofria um impulso que não raramente bastava para fazer as cervejas tremer no cimo da mesa.

Tinha também por hábito murmurar frases inteligíveis ou então soltar palavras contra o árbitro, aconselhando algum jogador a chutar desta ou daquela forma.

Aquela tarde era especial: se a sua equipa ganhasse, tornava-se campeã; se perdesse ou empatasse, adiava as decisões mas nada ficava perdido.

O senhor Cinzento estava realmente nervoso.

- Joguem à bola! – gritava em direção da televisão.

A sua equipa estava a dominar mas não havia modo de marcar um golo. A cinco minutos do fim, o adversário fez um perigo contra-ataque que só foi detido em falta. Era um livre perigoso, à entrada da grande área.

O jogador preparou o livre com cuidado: num gesto rápido deu um beijo à bola. Fez uma série de passos atrás. O estádio estava suspenso… e… o pior aconteceu.. Foi golo.

O senhor Cinzento estava realmente transfigurado e dentro de breves momentos desatou num monólogo.

- Sporting, tu não mereces… eu avisei-te… não quiseste saber…

Falava com o clube como se fosse uma pessoa que estivesse à sua frente. Alguém que tinha errado e tivesse de sofrer uma dura reprimenda.

- Tu não mereces ser campeão…

Até que alguém ripostou.

- Não merece o quê? Claro que merece… está mas é caladinho…

O café estava pejado de sportinguistas e de repente todo o mal-estar se centrou no senhor Cinzento.

- Se não gostas vai para casa, ó palhaço.
Criou-se um crescendo que se tornou desconfortável. O senhor Cinzento acabou por pedir a conta e sair. Desde então nunca mais o vi. Provavelmente terá mudado de café.

(histórias futebolísticas)

1 Comentário

Jorge Xerxes

Lílian,

Gostei Muito de Sua Crônica!

Um novo ciclo longo se inicia.

Importa carregarmos a bagagem da experiência, despojarmo-nos dos comportamentos que só agregam peso e constrição.

Um Beijo, Jorge