quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

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CONTAÇÃO - "O caso do afamado herói louco de Santana dos Pinhais", por M.Mei



Caros leitores

CONTAÇÃO está de volta!
Em toda quinta-feira, um conto novo publicado por aqui. Espero por vocês!

E hoje já tem "contação"...





O CASO DO AFAMADO HERÓI LOUCO DE SANTANA DOS PINHAIS



Era um louco que vivia na casa ao lado. Do tipo de manicômio mesmo, como um Napoleão de pijamas ou um Cristo que mija nas enfermeiras. Mas esse, o da casa ao lado, não tinha trancas que o mantivessem isolado ou um cuidador que os livrasse dos males da mente. Era um louco, acima de tudo, solitário.

Creio que a loucura tenha vindo depois da solidão, quando se fez necessário o preparo de seu próprio café pela manhã e quando os boas-noites passaram a ecoar na casa silenciosa. Dizem que é assim que acontece – a pessoa cria fantasmas que lhe façam companhia, deita-se ao lado da memória da esposa morta, desperta como se fosse o último a sair de casa. E os dias passam, a vida parece mais leve, e ela vai deixando-se enlouquecer aos poucos, deixando-se esquecer aos poucos.

Era fácil entender as dores do homem da casa ao lado. Confesso que compreendia e até sentia um pouco de compaixão – quando não sentia medo. É fácil ser solidário com a cruz do outro, principalmente no anonimato, desobrigando-nos da prova do altruísmo ilegítimo.

O louco se vestia de Homem-Aranha e passava o dia todo trepado nas árvores da rua. Chamaram a polícia, os bombeiros, e até mesmo um padre se dispôs a conversar com ele. Mas o louco não era louco, loucos eram os outros que tentavam impedir o trabalho de um super-herói de fundos rasgados e pés descalços.

Depois de um tempo as pessoas deixaram de se importar e até acostumaram-se a ele, sabiam que era louco, mais fácil deixar o homem quieto. As crianças inventavam cães perdidos ou atiravam suas bolas em cima de telhados só para ver o herói não convencional em ação. Gargalhavam de seu desajeito e acabaram ganhando o coração do louco, que gargalhava junto.

Manuel, o barbeiro do outro lado da rua, ia todo fim de tarde até a árvore e para perguntar ao louco sobre o boletim do dia – quantos tinham sido salvos, de quantos facínoras ele havia livrado a cidade. E o louco respondia. Mas Manoel não debochava do super-herói da rua como faziam as crianças. Ele sabia, sim, que o louco vivia só e que talvez pudesse aproveitar uma boa conversa, mesmo que dela não sobrasse sentido algum.

Fora os resgates de cachorros e os boletins diários para o barbeiro, o louco era quieto. Quase nunca descia da árvore. Ficava só, a observar o movimento da cidade, a contemplar as situações que diante dele se formavam, a escutar a conversa dos passantes para torna-las suas. E assim que o sino da igreja da pracinha anunciava dezoito horas, o louco deixava seu posto de vigia sorrindo. Eu tinha a impressão de que aquele sorriso representava uma verdadeira satisfação pelo dever cumprido.

Em um desses fins de domingos mornos em que as pessoas das cidades de rio se refugiam em suas casas contra os ataques de muriçocas, o louco observava de cima uma cadela gorda que lambia as partes com dificuldade, limpando o sangue que lhe escorria. Coisas das mulheres – deve ter pensado enquanto ruborescia, talvez por assistir com tanta atenção ao ritual de higiene íntima da cachorra.

Eu o espiava por detrás da cortina florida que guardava a janela da sala. Nem com superpoderes aquele herói maluco poderia me saber ali, e talvez fosse por esta razão que eu, ao contrário dele, não me envergonhasse por destrinchar sua intimidade da mesma maneira que vinha fazendo em todas as tardes dos últimos meses.

Eu havia tornado o louco um projeto pessoal, um estudo de comportamento, uma experiência à qual passei a dedicar grande parte do meu ócio pós-aposentadoria. E, naquele dia quente, a tarde passou quase toda sem qualquer problema: o louco em cima da árvore, as ruas desertas, a cadela largada na sombra do muro e eu atrás da cortina.

Foi de repente que o som da sirene surgiu ao longe como um recém-nascido em cólicas, e cresceu até atingir a rua e alertar o herói de plantão. O louco então se jogou no chão e saiu correndo atrás do caminhão vermelho que ecoava dentro das casas fazendo com que seus habitantes despertassem da morbidez do final do dia e saíssem às ruas para o espetáculo. Em cidades pequenas, incêndios e acidentes são dignos da contemplação mais estranha, e eram assistidos em detalhes pelos cidadãos-moscas. Naquela pequena cidade, entretanto, a atuação do herói avesso era um espetáculo à parte. 

Resolvi seguir meu projeto, ver aonde ele iria, quais seriam seus grandes feitos diante do anunciado incêndio. Chegamos, ele antes e eu minutos depois, a uma casa pequena na Rua Dezenove. O fogo já tinha avançado sobre dois terços da construção, e os bombeiros persistiam na tentativa de salvação, ao menos, de suas paredes esbranquiçadas pela cal.

O louco olhava a cena como se analisasse um tipo de estratagema banal e de simples resolução. Pude notar que as pessoas se movimentavam em volta dele como se aguardassem ansiosas o momento em que o herói assumiria seu momento histórico. Nunca houvera qualquer oportunidade de afirmação como aquela que se apresentava ali.

E teria sido o momento perfeito para o heroísmo se a situação precisasse de super-heróis. Mas a casa já estava condenada, e os moradores desesperavam-se fora dela. Não havia cães, passarinhos ou bebês que justificassem a entrada do louco no meio das chamas. Mesmo assim, a despeito de qualquer advertência dos bombeiros e para a felicidade dos espectadores, o louco saiu correndo e desapareceu no fogo enquanto as pessoas comemoravam em êxtase.

Segundos depois, nada de louco. Todos em silêncio aguardavam a saída triunfal do super-herói da cidade, o único que ela tinha. Um dos bombeiros tirou o capacete em reverência e os outros o seguiram. Ouviam-se comentários sussurrados e lamentos enquanto as pessoas se dispersavam aos poucos, até que só fumaça e fuligem contavam aos desavisados sobre o incêndio daquela tarde.

No dia seguinte, ouvia-se nas vendas e nas farmácias, na Igreja e nas escolas sobre o fracasso do “herói louco” de Santana dos Pinhais. De minha janela, pude ver o Manuel do outro lado da rua a fitar a árvore durante horas naquela manhã. De vez em quando abaixava um pouco o tronco e forçava os olhos como se procurasse algo no meio das folhas. Depois voltava à posição inicial, ombros e cabeça tombados no batente da porta da barbearia, o olhar de desconsolo.

Os jornais locais, que saíam às sextas-feiras, não mencionaram sobre o incêndio, tampouco sobre o louco que saiu correndo em direção às chamas – e à morte – para provar-se herói. A cidade determinara o esquecimento. O total esquecimento daquele herói que havia saído correndo em direção ao fogo para provar-se louco.






Mariela Mei é poeta e escritora. Bloga em gracadesgraca.com
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