Um ônibus nunca
é um ônibus. É um depósito de almas e de corpos. Monstro que se arrasta pelas
estradas carregando nas entranhas pequenos vermezinhos humanos. Pequenas
doenças que proliferarão... a senhora olha profundamente pra mim. Lá das
distâncias todas que lhe concederam a experiência - que acha que tem - ela tenta
decifrar meu rosto. Poderia tentar sorrir, ser gentil. A gentileza não passa de
outra máscara que nunca uso. Ela não se intimida com meu rosto sisudo. O que
quer essa velha? O que pretende esse pequeno aglomerado de ossos cansados e
pele ressequida? É ela quem sorri, e seu
sorriso é constrangedor e aquece o ambiente, seus olhos grandes parecem
dilatar-se e proporcionar um brilho consolador. Eu não sorrio, não posso. Meu
Deus, não tinha percebido que não consigo mais sorrir, meu estado de espírito
esculpiu um rosto em mim que não permite amenidades, meu rosto é um mapa de
todos os abismos, profundos, severos, tristes...
Eu conheço você.
Ela diz. Mas eu não a conheço. Posso garantir. Conheço mais gente do que você
possa imaginar, esse é o meu dom. Conhecer gente. Ver. Ela ainda está sorrindo.
Ver por trás do muro. Ela está com minha mão entre as suas. Pequenas mãos
macilentas e frias. Tento puxar minha mão, aquele contato está me constrangendo...
a força dela está além da fragilidade de sua imagem. E é isso que ela me diz.
Voz sussurrada, olhos apertados... “A imagem é apenas imagem, o que procuras
está além da imagem, muito além de qualquer imagem...” retiro minha mão, meus
olhos querem fuzilar aquela velha. “Lidas com coisas que não entende” ela
sorri. “Equilibras-te numa fina linha”... Levanto-me para trocar de lugar, ela
fecha os olhos e faz com que me sente novamente. As luzes da estrada fogem
sempre, “todas as luzes estão fugindo” ela sussurra: “Muito escuro”.
- Qual é o seu nome? Ela abre
novamente seus grandes olhos. “Um nome?” “O que uma designação serviria para te
ajudar? Mais uma imagem para poderes significar?” Seus olhos estão atravessando
meu corpo e fugindo com as luzes distantes das casas, dos carros... “veja só...
não me interessa o teu nome, nem mesmo o teu rosto... que nada são... eu sou
muito mais que meu rosto, meu nome ou meu corpo, imagens... ela sorri...
fluxos... somos fluxos, forças... movimentos caóticos.... é isso que somos...
agora durma. A noite ainda te reserva muitas surpresas. Ela emite um pequeno
sorriso... e essa cara de mau não vai te ajudar muito. Meus olhos afastam-se da senhora que adormece... procuro a janela e
a noite lá fora. A grande estrada. Uma música calma e irritante procura afastar
a ansiedade dos que pretendem chegar. Todos tem um lugar pra chegar, pessoas
que os esperam, conversas para serem resgatadas, memórias para serem
refrescadas. Todos são humanos, e a humanidade é um coletivo, todos. Mas eu não
era humano. Ou acreditava que não era. Não podia ser. Não queria ser. O que
era? O que sou? Não me agrada ser mais um verme nesse ônibus, não me agrada ser
esse pulsar de coração, esse medo que me domina, essa ansiedade que corrói
minhas forças. Essa pausa que não me joga contra o muro. Onde está o muro para
me esmagar ou ser esmagado? Ouço minha
voz na distância de todas minhas cavernas profundas gritando para o motorista
parar. Ele diz que eu sou louco, que é perigoso, a velha sorri, ela parece
saber. Mas o que é saber? – Eu fico.
Vejo as luzes do
veículo irem longe, a escuridão da estrada investe contra mim... um frio que
não sentia começa a gelar meus ossos.
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