terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

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AS LARANJAS


Autonomia, embora não soubesse o sentido desta palavra, quando pronunciada em sua presença, era apenas um som que achava bonito, definia bem o que queria ao encarar a fruteira preenchida com seu colorido-imã.
As bananas podiam ser desmistificadas facilmente, sua casca não oferecia muita resistência, todavia, elas pareciam mais bonitas vestidas de amarelo, mas o gosto de sua nudez compensava o desacato à vaidade.
As maçãs, estas eram envergonhadas e por isso muito raramente, tiravam sua roupa, preferiam ser comidas vestidas de vermelho, às vezes algumas sementes eram engolidas, como se quisessem perpetuar a sensação de profanação dentro de todos aqueles que ousaram contra a sua castidade.
 Mas as laranjas, estas recatadas não se mostravam com facilidade, era preciso ajuda de uma faca. Faca: objeto que não é permitido o manuseio às crianças. Portanto, não se podia deliciar a fruta sozinha, um adulto deveria estar presente de corpo e desejo de ajudar, o que nem sempre acontecia.
As sementes dos frutos consumidos, já tinham dado origem a novos frutos, e ela que enquanto criança era uma espécie de semente de adulto, começara a germinar. Àquela altura o fascínio das facas a tornou uma exímia atiradora do laminoso objeto, era uma das principais atrações do circo.
A casa onde crescera não comportava mais seus troncos, embora soubesse que suas raízes deveriam ser sacrificadas, escolheu a vida nômade como membro de uma trupe. Os pais não aprovaram, mas o que se pode fazer, quando o fruto cai do galho?
Os truques do namorado mágico passaram a não encantá-la mais, ele nunca conseguiu restabelecer a felicidade que ela jurava ter sido sua há muito tempo. O flerte com o domador não amansou seu vazio, que rugia feroz em sua rotina.
O lar itinerante depois de um longo tempo permitiu seu reencontro com a sua cidade natal, de dentro do trailer avistou seu lugar-útero, onde nascera e crescera. A comitiva chegara ao seu destino temporário mais uma vez.
Lonas ao ar, trabalho duro, mas que aos olhos das crianças da vizinhança, continha a mesma aura mágica dos balões cheios com o ar, esta coisa invisível capaz de preencher grandes objetos.
Relutou, mas não conseguiu evitar que seu orgulho fosse derrotado pela saudade. Passos que não precisavam dos olhos para guiá-los, sabiam o caminho de cor e salteado, a mão tão precisa em seu oficio parecia titubear ao tocar campainha: Um leve toque...
A porta pareceu estar mais lenta em seu abrir, a mãe a mirou, ainda dentro do domicílio, descrente dos seus olhos que não eram mais tão eficientes, e mesmo com a ajuda dos óculos fraquejavam diante do que estava a sua frente, vacilante, ainda do lado de fora, ela abaixou, rapidamente, a cabeça, mas os olhos eram imãs e não podiam evitar o reencontro. As palavras tinham desaparecido, um forte abraço estabelecia a comunicação entre elas.
Sentado numa cadeira de rodas, no interior da sala, o pai com sequelas de um a.v.c., não podia falar mais e muito menos andar, ao enxergar a filha demonstrou seu afeto por meio das lágrimas, as quais estamparam a camiseta que ela vestia.
Não, aquele não era um retorno, embora tivesse prometido aos seus genitores que voltaria num espaço mais curto de tempo do que da ultima vez, não se sentia mais em casa.
Era preciso seguir, pois naquela noite haveria espetáculo, não podia desapontar as crianças. Ao fechar o portão-casca e focar a casa do outro lado da rua, era mais uma das laranjas, que não conseguia chupar sozinha, assim como tantas outras coisas das quais nunca conseguira extrair o supra-sumo.

1 Comentário

Pablo Flora

Belo conto, Fernando! Reminiscências pela laranja, o re-encontro, a fruta-pessoa-nômade, a leve melancolia de não extrair o supra-sumo: o que nos dá um Grande sumo de Conto. Parabéns! Abços