quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

0

O CARRO DO SOL 9 - JANDIRA ZANCHI




O CARRO DO SOL
9.
        Quais são as principais discordâncias do homem? Se afeito ao paraíso, que olvido o terá atirado ao silêncio de si mesmo? Em que fonte foi forjada a estroinice, que embebida no fel da larva, curva o manto do sábio até o estigma da descrença? O que faltará ao coração daquele que levantou o cutelo da discórdia? E por que o lago da boa inspiração não é a norma nos cursos de águas?
       Alado enrodilhava-se, ora ao sabor dos raios do Sol, em outras nas frescas do riacho.  E, se da ausência de água ou de calor, não se decidia. De quando em quando aspirava as golfadas das aragens matutinas, mas, ainda assim, perdia-se em trâmites de dúvidas e questões.
    Estaria na ausência dessas golfadas de respiração a causa dos grandes descuidos? Seria o silêncio do canto dos pássaros o responsável pelos equívocos das almas?
    E Alado movia-se com a lentidão das marés. Espiava e dedilhava o sorriso do dia. Nessa apresentação diáfana da vida o templo desnudava-se de empecilhos, sem falsos véus coloridos, imantando-se na planície. Velas divagadas submetiam-se a todas as consultas. Era crível que se poderia vislumbrar o acordo dos meios.
     Suficientemente erguidas as fornecidas faces dos fatos humanos espelhariam, na matéria, os modos e as vias. Aspectos e ângulos eram bem observados. Arqueados em graciosos louros de ouro, branco e prata, eram nítidos de claridade.
       Tão pragmático, Alado, que sempre soube que na vida é preciso aceitar a torrente e esquematizar-se nas prendas e nos enfeites, espantava-se de suas dúvidas:
- E então, é só viver? E exalar? E o escândalo das entranhas em angústias e despedidas é mesmo despido de dádivas? O conhecimento é um mantra dirigido, principalmente, pelas medidas do medo? Pelo poder?
       Escandalizava-se de verificar que a cartilha de sua sina era tão preenchida de indagações. Supunha que aos Mestres eram vedadas essas reticências que se impõem aos poucos precisos sábios e aos metódicos cientistas... enfim, mesmo aos semideuses.
       E Alado passeava ao largo de si. Queria a sua imagem inteira, circunspecta, totalmente inteirada nos ancestrais e arquétipos. Verificou, com a sua perícia de professor, o detalhamento de seus modos. Chegou mesmo a crer-se um pouco estreito, desses afeitos a questões de pronta resolução. Surpreendeu-se ao dar por si nos acordes da poesia, lisa e roliça, encrespada de muita luz, originada de vagas bravias e desejosa de paz.
        E, recriando-se, retornou às bordas da realidade. E amou, deitou-se de cumprido e enviesado, afundando até o fim de suas trevas, deixando-se traspassar por uma tarde cinza e violácea, até que, estreito e vazado de saturar-se de si mesmo, não conhecia mais do que cinco ou seis versos, todos puídos e saturados de amor.
       A montanha que espiava, crua e infinita do horizonte que não atingia, ainda era nua e vacilante, soberba e indiferente, estremecida em azul e verde. Esperava-o sôfrega, danada de desejo, furiosa daquela valentia. Quem sabe esse... e lembrava-se de umas seis dúzias de outros... tanta poesia, o mel celeste escorrendo-lhe pelas bordas vazias. O Mago não recuaria.

Seja o primeiro a comentar: