sexta-feira, 8 de março de 2013

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Para a mãe do Araribóia


“Respeito muito minhas lágrimas

Mas ainda mais minha risada

Inscrevo assim minhas palavras

Na voz de uma mulher sagrada”

– Caetano Veloso


Eu trabalho num prédio de escritórios na cidade do Rio de Janeiro e resido em meu apartamento no centro de Niterói. Quando me mudei de São Carlos, interior de São Paulo, para cá, em meados do ano passado, eu tinha em mente residir no aterro do Flamengo ou em Botafogo, visto que o escritório fica no centro do Rio e prezo muito pela qualidade de vida. Como um cara típico do interior, sou um tanto avesso às multidões, à agitação e, principalmente, aos longos engarrafamentos. Mas com o valor imobiliário nas alturas, decidi por me estabelecer no centro de Niterói.

A minha rotina é pacata. Alguns dias o meu comportamento pode ser classificado mesmo como excessivamente metódico e previsível – coisa de engenheiro: Levanto às 6h15 da manhã, higiene pessoal, desjejum frugal, caminhada de quinze minutos do apartamento até o terminal hidroviário de Niterói. Daí vem a parte chata: Ficar imerso e diluído à multidão espremida entre a catraca de entrada do terminal e as grades que levam para o corredor de acesso ao píer flutuante. Depois estas grades se abrem; então mil e trezentas pessoas avançam apressadas para o corredor com uma estrutura metálica de cobertura. As grades se fecham atrás e a multidão, comprimida entre as grades e o píer flutuante, fica aguardando a chegada da barca. Diga-se, de passagem, que estes dois estágios de confinamento me trazem a lembrança os campos de concentração ou o filme Pink Floyd The Wall, do diretor Alan Parker, 1982; um ou outro, dependendo do dia.

A travessia da Baia da Guanabara na barca, por outro lado, é reconfortante; muita vez o ponto alto do dia. Navegar pelas águas mansas da baia ao embalo suave das ondas; o cheiro do mar; a coreografia aérea dos biguás a flanar com suas asas longas, esbeltas e o peito aberto ao vento. Se o céu está limpo, a vista das encostas do Rio de Janeiro é digna dos mais belos cartões postais. Você envolto naquilo tudo. Isso dá paz. E, se o céu não é de brigadeiro, aproveito para desfrutar de uma boa leitura. Vinte minutos de paz.

Depois mais oito minutos de caminhada e estou no escritório, pontualmente às oito da manhã. Trabalho duro até meio-dia; uma hora de almoço; mais cálculos, mais relatórios, mais reuniões e, enfim, 17h30. Ponto. Então todo o trajeto em ordem reversa; e isso me lembra The Curious Case of Benjamin Button, do David Fincher, 2008. À noite, como não tenho tv no apartamento e moro só (por sorte, ou já teria acumulado uma prole vasta), a opção é me divertir com a música e minhas leituras. A música, ela está sempre presente. 22h22 dou com a mão no interruptor. Tédio com um tê bem grande pra você!

Entretanto, no dia 26 de Fevereiro de 2013, uma terça-feira, alguma coisa fugiu ao meu controle: A barca estava próxima de Niterói quando finalizei a leitura de um capítulo, botei o livro na mochila, olhei pela janela e percebi o céu escuro; São Pedro com intenções de se divertir a beça no playground. Quando a barca atracou, chovia forte e relampejava. Tempestade de responsa. A maioria das pessoas não queria sair da barca, que é fechada. Eu me encontrava próximo a uma das portas de acesso e concordava com a maioria; não queria tomar aquela ducha nem a pau, estava muito bem ali, obrigado. Acontece que uma boa parte daquelas mil e trezentas pessoas não se importava com o aguaceiro ou tinha compromisso importante e queria sair. Então começou a confusão e o empurra-empurra. Eu tive de vencer os quinze metros de rampa descoberta que ligam o píer flutuante ao corredor com cobertura metálica. Isso bastou para que eu ficasse completamente encharcado. Era impressionante o volume de água que despencava do céu e, de quebra, ventava mu-i-to.

Permaneci no centro do corredor com estrutura metálica de cobertura. Eu estava ensopado, mesmo assim não estava com a mínima vontade de vencer os dez ou quinze metros a céu aberto que me separavam do prédio principal do terminal hidroviário de Araribóia. Xinguei mentalmente a mãe do índio materializado naquela estátua ridícula de bronze, mas Araribóia estava pouco se lixando para o aguaceiro que caia; ele permanecia imóvel, os braços cruzados e o queixo levemente empinado. E eu xinguei mentalmente a mãe do índio de novo; confesso que isso me trouxe algum alento. Minha estratégia era a de permanecer bem no meio do corredor coberto; assim o calor humano da multidão me protegeria e eu não receberia diretamente as rajadas de vento e chuva geladas que atingiam os que estavam nos contornos do corredor. Essas pessoas estavam se molhando muito, reclamavam e provocavam certo tumulto; ainda assim, o meu plano ia bem, eu me mantinha firme e no centro do corredor coberto, graças a minha estatura avantajada e o corpo com sobrepeso.

Pimenta nos olhos dos outros é refresco, é o que deve ter pensado São Pedro. De repente, o telhado de cobertura foi arrancado da estrutura bem em cima das nossas cabeças. As imensas chapas metálicas pareciam simples folhas de papel flanando ao sabor do vento. O tumulto foi generalizado, alguns gritavam histéricos, outros corriam; eu me peguei paralisado em meio àquele caos, sem saber se corria para o prédio do terminal – assumindo o risco de ser decepado por uma daquelas lâminas metálicas voadoras – ou se permanecia estático naquele ponto – aguardando a estrutura metálica desabar sobre a minha cabeça. De súbito, senti-me reduzido à dimensão ínfima de uma formiga; então sofri uma descarga de adrenalina e me pus a correr em direção ao prédio do terminal. Estava são e salvo. Olhei ao meu redor: centenas de pessoas em desespero, muitas delas chorando; o telhado da cobertura do corredor completamente devassado; todas as chapas metálicas foram arrancadas pela tempestade, algumas foram parar no estacionamento, muitas desabaram próximas, outras delas caíram no mar.

Foi então que me apercebi de um detalhe interessante: apesar do pânico, do caos, do absoluto descontrole daquela situação eu não via nenhuma pessoa ferida. Nenhuma daquelas dezenas de lâminas metálicas atingiu uma única criatura sequer dentre centenas de humanos!

Voltei para casa caminhando debaixo de chuva quando ela amainou; já estava todo molhado mesmo. Tomei um banho, comi alguma coisa. Ainda era cedo, mas eu sentia o meu corpo dolorido e estava exausto. Deitei na cama e fiquei em silêncio, refletindo. Na minha imaginação considerei aquilo um pequeno milagre. Não desses fenômenos sobrenaturais como separar os mares, andar sobre as águas ou multiplicar os pães. Algo sutil, como se a natureza tivesse o poder de operar movimentos precisos e harmoniosos além da capacidade de compreensão da mente lógica, racional, dum engenheirinho de bosta. E me lembrei do filme The Impossible, do diretor Juan Antonio Bayona, 2012, antes de adormecer.



“Derrama o leite bom na minha cara

E o leite mau na cara dos caretas”

– Caetano Veloso



3 comentários

Pablo Flora

Que dia hem!? rs. Mas rendeu uma ótima história e reflexão... Abraço!

Jorge Xerxes

Oi Pablo!

Nem me fale, foi um sufoco só...

Agradeço pela tua leitura e comentário. Fico contente em saber que gostou da narrativa!

Um Grande Abraço, Jorge

andre albuquerque

Um belo flagrante da vida,parabéns Jorge.