Resumo
Este trabalho
propõe-se a investigar a construção do tempo dentro da obra poética, amparado
por questões morfológicas associadas à fenomenologia da memória e a indagação
filosófica do tempo dentro do poema Profundamente,
de Manuel Bandeira.
Palavras-chave
Memória, Língua,
Linguagem, Tempo
A língua
convertida em linguagem, possibilita aos seres humanos o ato da comunicação, é
por meio dela que um homem pode reconstruir o passado, e avançar até o futuro,
destacando-se dentro do coletivo, os literatos que com um elaborado trabalho
com a linguagem, conseguem conferir a esta um efeito singular dentro do vasto
campo da linguagem escrita, neste seleto grupo está o poeta Manuel Bandeira.
Dentre os
grandes temas encontrados dentro da obra do poeta, a morte é sem dúvida um dos
mais recorrentes, uma provável explicação para isso pode estar num dado biográfico
do escritor, que desde sua juventude lutou contra a tuberculose, doença a qual
o impediu de tornar-se um engenheiro e o acompanhou até o final da vida,
fazendo-o viver com um sentimento medieval em relação à morte por toda a sua
vida.
A remontagem da
infância enfatizando o seu temor já citado é encontrada no seu poema Profundamente, publicado numa das obras
escritas dentro do período de excitação do modernismo, o livro Libertinagem.
Um poema
batizado com um advérbio de modo, já sugere algo moderno, pois na grande
maioria das obras, há predominância de substantivos no título antecedido por um
artigo. Se segundo Aristóteles a arte é uma imitação da vida, em Profundamente, o modernista, busca a
imitação de uma máquina do tempo e não da voz, tal qual o filósofo se referia à
poesia, a qual o permite regressar ao passado, para que por meio de uma festa
de São João ocorrida na sua infância o eu - lírico possa se expressar, o mesmo
santo pelo qual a alcunha de anunciador do modernismo lhe foi creditada por
alguns companheiros.
No primeiro
verso: Quando ontem adormeci, a
segunda palavra que primariamente poderia ser considerado um advérbio de tempo,
se analisada apenas pelo ponto de vista morfossintático, configura-se como uma
sinédoque, que se refere ao passado, marcando um ponto de estreitamento entre a
poesia e os gêneros narrativos, por inserir no texto o recurso do flashback, que de certa forma, funciona
como uma forma do eu-lírico justificar sua situação atual, como escreveu
Augras: A evocação da idade de ouro nasce
do reconhecimento do sofrimento e do desejo de justificá-lo. (pg. 28)
Os únicos dois
verbos da primeira estrofe (adormeci e havia), encontrados no primeiro e no
terceiro verso, por estarem no pretérito, indicam o deslocamento no tempo feito
pelo eu – lírico, contudo, é a presença de advérbios de lugar, encontrada na
primeira estrofe, que indicam a importância do local dentro da construção da
obra, pois o cenário dos acontecimentos está preenchido por emoções, dento da
primeira estrofe há a presença da alegria comum ás festas:
Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Estrondos de bombas luzes de bengala
Vozes, cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.
Todavia o
principal espaço exposto no poema é a memória, esta é que reconstrói os espaços
que trazem sentimentos de perda ao eu - lírico, fazendo valer o que foi escrito
por Binswanger:
A relação do presente individual com
o passado não é em si determinada pelo passado, mas pelo horizonte dentro do
qual são experimentados ao mesmo tempo presente e passado (apud Augras, 31)
O estado de
solidão e perda expresso dentro da obra por estar diante do estado inexplicável
da morte, começa a ser construído a partir da segunda estrofe, utilizando a
desaceleração do ritmo do poema, que na primeira estrofe, por desenhar um
cenário no qual havia barulho por causa da festa, tem um ritmo dentro dos
versos livres mais acelerados ao ser recitado, a presença da assonância com a
letra i nos dois primeiros versos: Nos
meio da noite despertei/ Não ouvi mais vozes nem risos..., contribuí para o
estado de tristeza expresso pelo eu - lírico, marcando um forte traço
estilístico dentro do texto, deslocando este para fora do tempo, o que pode ser
confirmado pelo verbo despertei no
final do primeiro verso. Colocando as emoções no estado atemporal, tal qual
escreveu Needleman:
As emoções que fazem parte da nossa
essência não mudam. São encobertas, mas grandes sentimentos independem do
tempo. São sempre agora; nada sabem do futuro nem do passado. (pg.13)
O primeiro verso
da terceira estrofe: Silenciosamente, composto
apenas por uma palavra utiliza por meio da motivação do signo lingüístico, a
tradução do significado desta, pela pausa sugerida em sua pronúncia. Embora
haja um corte de tempo no poema, pelo adormecimento do eu-lírico anunciado na
quarta estrofe: Quando eu tinha seis
anos/ Não pude ver o fim da festa de São
João/ Porque adormeci, de uma maneira geral, aparece uma espécie de diálogo
com o cinema, mais especificamente com o recurso do plano-seqüência, pois os
cenários descritos desde o inicio do poema ao seu final, vão causando uma ininterrupta
sucessão de imagens que se sobrepõe uma a uma.
O sexto e o
sétimo verso: Onde estavam os que há
pouco/ Dançavam, talvez sejam a síntese de todo tom transferido pelo poema,
pois o questionamento da morte dos entes queridos e pessoas próximas, funcionam
como reflexo para questionar a própria existência, a metáfora da dança como
síntese da vida enfatiza o sentimento contido na obra, que funde o pesar com
uma crise existencial.
Com exceção do
verbo ouço que aparece no primeiro
verso da sexta estrofe e do verbo Estão,
que integra a última estrofe, as demais palavras desta classe morfológica que
integram o texto, estão todos conjugados no pretérito, o que insere como tema
primordial do poema, a questão do tempo, que mistura o presente com o passado,
por meio da lembrança, tornando o tema uma questão metafísica tal qual nos
mostrou Needleman:
A lembrança metafísica nos conduz a
um “lugar” onde aquilo que chamamos de tempo não mais existe, e nos expõe a
momentos nos quais as nossas capacidades que operam fora do tempo comum entram
em contato com as que operam no tempo causal e mecânico. (pg. 45)
Na penúltima
estrofe do poema, encontrando-se no tempo presente, o eu - lírico, ressente-se
da ausência dos seus entes queridos, a marca dramática aparece principalmente
por meio dos pronomes possessivos usados para se referir aos seus avós: Minha avó/Meu avô... Aproximando mais o sentimento de perda do
emissor, mas a presença do outro é uma forma deste questionar a própria
transitoriedade de seu ser dentro do tempo fugaz: Onde estão todos eles? Uma maneira de referir-se ao porquê da
existência, perante o nada da morte, retrocedendo ao conceito de tempo da idade
média, no qual dizia-se que tempo é morte, ao contrário do tempo é dinheiro da
cultura moderna, tal qual escreveu Augras sobre o tema:
O tempo não é intuição essencial,
necessária à orientação do homem. É antes um edifício defensivo, construído
para fazer de conta que o homem é poderoso, ou a civilização permanece e que o
“sentido da História” é o sentido do ser. (pg. 32)
A última estrofe
dá desfecho ao questionamento com o qual termina a anterior, iniciando com uma
marca do discurso direto, a resposta é dada ao eu-lírico: - Estão todos
dormindo/ Estão todos deitados/ Dormindo/ Profundamente.As metáforas dormindo e deitados embora não suspendam o estado de angústia no qual se
encontra o emissor, respondem questão, com uma constatação que Augras bem
descreveu: O ser para a frente de si mesmo nada mais é do que o ser para a
morte (pg. 32)
REFERÊNCIAS
AUGRAS, Monique, O
Ser da Compreensão, Vozes, São Paulo: s/d
ARISTÓTELES, A Arte
Poética, Martin Claret, São Paulo: 2007
BANDEIRA, Manuel, Antologia Poética, Nova Fronteira, Rio de Janeiro: 2001
NEEDLEMAN,
Jacob, O tempo e a alma: Para onde foi o
tempo significativo E como consegui-lo de volta, Ediouro, Rio de
Janeiro:1999
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