CAMILIN
O que nos faz crianças é o nosso
imaginário,
o que nos faz adultos são os nossos segredos.
Era
manhã ainda quando saí para ir à escola e o encontrei lá, em frente ao portão,
revirando o lixo com umas mãos escuras e de todo ossos. Ou poderia ser à tarde,
e eu saía para a aula de balé. Mas as mãos eram escuras, e ele todo era magro
como o abandono. Camilin era seu nome. A verdade é que era outro, mas isso
ninguém sabia. Nem ele mesmo. Sem identidade, Camilin agora fazia parte do entendimento
real e imaginário de nossa cidade, ainda que dela se apartasse, ainda que toda
a sua condição o marginalizasse de qualquer compreensão de humanidade. Camilin
era nosso, mas não o desejávamos.
E
naquela manhã eu o desejava menos ainda. Quando cheguei à calçada ele me olhou
com uns olhos desesperados e vermelhos, os olhos da loucura. De sua boca saía
um pedaço de papel higiênico sujo de merda. Saíam também algumas palavras
incompreensíveis, embaladas por uma embriaguez diferente, algo como um excesso
de existência que o sufocasse e fizesse com que cuspisse maldições. Camilin
mandou-me embora de minha própria casa e atirou uma lata amassada na minha
direção para que eu tomasse meu rumo mais rapidamente. Naquele dia o odiei e
desejei que ele morresse afogado no lixo. Aquele foi o único dia em que não
tive compaixão de sua condição de andarilho miserável que trazia a demência
como um fio tensionado entre a vida e a morte, mas também o único dia em que
falei com ele: mandei-o à merda.
Camilin
andava pelas ruas de Orlândia o tempo todo porque a cidade era a sua casa – onde
dormia, comia e fazia os hábitos. Mais que um homem, Camilin era um cão sem
dono. Ladrava para os que se aproximavam por saber de seu exílio, e ninguém com
quem eu tivesse conversado poderia precisar há quanto tempo ele sofrera a
metamorfose. Diziam apenas que aquele homem roto e louco costumava ser um
violeiro dos bons e que a maldita droga é que havia derretido seu cérebro. Mas
poderia ser também por sequelas da tortura do início dos anos 70, ainda que
jamais se tivesse ouvido sobre qualquer agente do Dops por aquelas bandas.
Fosse como fosse, Camilin era nosso. Como uma verruga que ignoramos apesar do incômodo.
Um personagem desconexo de uma comunidade que, por conveniência ou crueldade (e
eu opto pela segunda), apenas aceitou e incorporou como seu. Seria um desses
ícones mágicos, não fosse a realidade madrasta, que o transformou em maldito e
fez com que aterrorizasse o imaginário das crianças daquela cidadezinha do
interior aos avisos dos pais – Criança
malcriada, Camilin vem pegar!
Mas,
para mim, perambulando pelas ruas ou me amaldiçoando, Camilin era quase uma
entidade, uma aparição momentânea, a constatação da existência e, por fim, o
esquecimento. Tanto que ainda hoje a memória costuma me pregar peças, e é comum
encontra-lo caminhando pelas ruas de Campinas, remexendo o lixo alheio ou
carregando o saco de estopa nas costas. Camilin foi nosso, mas não o
desejávamos. Não ali, circulando pelas calçadas e amaldiçoando os bons pedestres.
Não ali, revirando as intimidades descartadas pelas famílias de bem da cidade.
A verdade é que às vezes era mais fácil ignorá-lo, como ao tumor benigno que
não faz valer a pena a cirurgia. Mas Camilin era apenas uma pinta saudável numa
sociedade de todo doente.
Mariela Mei é poeta e escritora. Bloga em gracadesgraca.com
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4 comentários
Ela tem o Dom da palavra!!!
Concordo com a Mariana. Excelente final. Não me canso de repetir. Parabéns Mei.
Se no texto encontro "excesso de existência", na autora, encontro longe, bem longe de uma prosa poética, a construção de uma personagem impecável. Presente e inesquecível. Hábil.
MUITO bom. Incomoda. Dói. Porisso mesmo... MUITO bom.
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