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Existe uma tradição católica cultivada não sei onde, nem
desde quando, mas existe. A vela de toda a vida: uma mesma vela acompanha o
fiel desde o batismo até o velório, passando pela primeira comunhão, o crisma,
o casamento, a unção dos enfermos. Concluída cada uma destas cerimônias, ela é
apagada e guardada em casa, à espera do próximo uso, até que sua chama seja
extinta em definitivo junto com o seu dono.
Bela tradição, de profunda simbologia: a mesma chama se
renovando nos momentos decisivos da existência. Mestre Duña, o avatar da
sabedoria suprema, enumera alguns possíveis desdobramentos - do fato e,
literalmente, da vela, já que ela muito provavelmente trincará em vários
pedaços e não estará mais parando em pé ao fim da vida do marmanjo.
No batizado, ao lado do padre, o padrinho segura a vela.
Este sofre de Mal de Parkinson. É a primeira de uma série de fissuras no ainda
reto bastão de parafina.
Mestre Duña adverte que há de se fazer uma ressalva que
precede o batizado do cristão. Em caso de parto difícil, se acenderem uma vela
nas vigílias de oração, é essa que valerá oficialmente como sendo a vela da
vida do rebento, pois foi acesa por intenção dele - que para todos os efeitos
já era um filho de Deus, mesmo estando ainda na barriga da mãe.
Crisma. Sendo a confirmação do batismo, acaba também
confirmando a sina da vela rachada. Ela ganha novas fissuras quando o crismando
a usa para bater na mão de um colega de sacramento, que inventou de fazer
chifrinho sobre sua cabeça na hora da foto da turma.
Casamento. O padre se excedeu na homilia e deixou a vela
acesa além da conta, consumindo quase a metade dela. O noivo, que a segurava,
derrama um charco de parafina líquida nas mãos da noiva, quase na hora de
colocar a aliança. A noiva morde o véu para não gritar de dor, mas num sofrido
espasmo dá com o cotovelo na vela, que vai ao chão junto com o buquê de flor do
campo.
Um belo dia, num interim de cerimônias, a estabanada
faxineira foi limpar o armário e a vela,
mais uma vez, obedeceu a lei da gravidade. A essa altura já são dezesseis
pedaços presos um ao outro pelo barbante do pavio.
Extrema unção. Após a benção do padre, o moribundo, em seu
leito de morte, orienta a futura viúva: "Querida, tem só um toquinho de
vela, mas deve dar e sobrar para o velório, o último ofício dessa minha fiel
companheira. Você acende por uns dez minutos, apaga e coloca a pouca parafina
restante no caixão. Pode ser no bolso do paletó, para ficar perpetuamente
comigo, junto do coração".
O pavio, mal apagado, incendeia instantaneamente o terno de
tecido sintético, e em segundos temos um esturricado defunto duplamente morto.
Mestre Duña conclui, com sua proverbial sapiência:
"Queridos amigos, essas são apenas conjecturas. Uma advertência nem contra
e nem a favor desse costume, seja lá onde for costumeiro. Só quis refletir um
pouco, e fazê-los também ponderar sobre as consequências, nem sempre beatíficas,
de sua prática. Fiquem com meu abençoado abraço”.
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