REFÚGIO
PARA O QUE SERÁ ETERNO
Se alugarem esta casa,
acabou. Porque tudo isso aqui é sexo, e o sexo não transcende, não vislumbra
aquilo que é impalpável. Estamos abraçados e eu sei que tudo termina com o gozo,
e o gozo dura até o momento do girar da chave na porta. Vem mais perto, amor,
porque eu quero ver se consigo sentir os seus pensamentos. Não se levante, não
desça as escadas. Eu olho aqui de cima e seu corpo escuro sob o sol no pátio,
nu e vivo em meio à fumaça do cigarro. Meus olhos e meu coração se derramam
todos dessa janela sobre você, e se eu pudesse, se impedisse que a casa nos
fosse tirada, eu mesma me jogaria. Mas as badaladas do relógio me repeliram do
parapeito, os três anúncios dessa tarde quente e de sua finitude. Fora daqui as
badaladas não são arrastadas e sofridas. E por isso eu sei que a casa aprisiona
todo o sentimento, e ele não passa das paredes, o amor. É ele que não
transcende, na verdade. Deito no chão e ouço seus passos em direção ao banheiro.
Você se lembrou de levar um lençol para nos aquecermos de toda a ausência, mas
com os ouvidos colados na madeira eu posso entender a sua relutância na volta. Não
tema, amor, porque quando a chave encontrar a porta não mais seremos. E talvez
os novos donos dessa casa que nunca foi nossa possam encontrar no silêncio das
horas os nossos gritos e o êxtase, e as paredes possam enrubescer por causa do
amor que nos roubaram. E talvez sejamos para sempre aqui, somente aqui, almas
perdidas da evolução, corpos rarefeitos aprisionados nas três badaladas. Eu me
contentaria com isso. Riria até a madrugada e correria nua pelas escadas. E me
jogaria da janela sobre seu corpo no pátio, sem medo da espera ou do desencontro.
Eternamente. Deite aqui, amor, nas minhas coxas. Deixe-me passear os dedos entre
os anéis pelo menos uma vez. Venha, venha logo, que eu já posso ouvir o
tilintar das chaves. Agora os passos na escada e as badaladas. Já são três
horas.
***
Mariela Mei é poeta e escritora. Bloga em gracadesgraca.com
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OBS: a periodicidade da coluna mudou! Por tempo indeterminado, os contos serão quinzenais ao invés de semanais.
3 comentários
Ah... Que pena que seus contos agora são quinzenais... Mas que bom que voltou a postar algo... Estava ficando com abstinência de ler os Contos da senhorita Mei. Mas uma vez, um belo texto, uma narrativa envolvente. Excelente conto!
Gostei muito desse amor abandonado pelas escadas ! Aiiiiii! Lindo!
Marila, você sabe brincar com as palavas de uma forma instigante.
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