SEM MEIAS
— Senhor, por favor, eu terei que
pedir que retire estas meias.
— Retirar minhas meias? Mas por quê?
— Porque meias são proibidas aqui,
senhor.
— E por que meias seriam proibidas
nesta sapataria? Eu preciso delas para escolher meus sapatos!
— As meias são proibidas aqui,
senhor. Não sou eu quem as proíbe, são os clientes. Todos aqui decidiram que as
elas não devem mais ser utilizadas, então o senhor vai ter que tirar suas
meias.
— Mas eu não vou tirar! Eu tenho
direito de usar meias! Eu quero usar meias! Elas esquentam e protegem meus pés!
E, sem as meias, como saberei qual o melhor sapato? Se eu vou calçar os sapatos
no meu dia a dia usando as meias, eu tenho que experimentá-los com elas!
— Mas aqui as meias são proibidas,
senhor.
— Tire logo as meias, homem! Sem
meias, sem meias!
— Isso mesmo! Sem mei-as! Sem mei-as!
Sem mei-as! SEM MEI-AS!
— EU NÃO TIRO! As meias são minhas!
Eu sempre usei e não deixarei de usar! As meias são importantes para mim, não serão
vocês a falarem o que eu devo ou não usar!
— Se não tirar as meias, a gente vai
tirar à força!
— É isso mesmo! Tire logo!
— E eu posso saber por que é que
vocês não querem que eu use as minhas meias?
— Porque aqui nesta sapataria elas
não são permitidas! Todos estamos sem meias! Aqui é uma sapataria, viemos pelos
sapatos, não pelas meias! Quer usá-las, vá a uma loja de meias!
— Mas as meias fazem parte do
conjunto! As meias são essenciais para os sapatos! São elas que ajudam a
acomodar sapatos aos pés!
— Mas nesta sapataria elas não são
permitidas! Ninguém aqui quer experimentar sapatos usando meias!
— Como assim? Vão acabar comprando
os sapatos errados! Vocês nem saberão como será calçá-los todos os dias com
meias, se não experimentarem usando meias! E mais... Toda sapataria empresta
meias para os clientes que não estão usando na hora da compra, esta mesma
sapataria já me emprestou várias vezes para que eu pudesse experimentar os
sapatos!
— Mas não fazemos isso mais! Agora é
assim: quer comprar aqui, não pode usar meias. Se usar, vai ter que sair. Se
não quiser sair, vai perder as meias! Ou os pés!
— Se forem tirar minhas meias, terão
mesmo que arrancar meus pés junto! Eu não tiro!
— SEM MEIAS! SEM MEIAS! Sem mei-as! Sem
mei-as! Sem mei-as!
— Mas isso aqui é um absurdo! E a
vontade do cliente de usar meias? E a liberdade do cliente de vestir o que quer
para comprar sapatos? A loja não garante a vontade, a liberdade do cliente?
— Sim! Garantimos a liberdade! A liberdade
de não usar meias! Aqui ninguém usa meias, ninguém confia nas meias! Elas ficam
úmidas e apertam as canelas! As meias só servem para condicionar o uso do sapato!
Se você experimenta um sapato com meias, terá que continuar usando as meias
sempre que for calçar os sapatos! Não poderá se desfazer delas, no fim estará
usando meias furadas e velhas!
— Mas que baboseira! Eu escolho usar
meias da mesma forma que escolho não usá-las! Eu sou livre para usar ou não! Não
sou escravo das meias, eu apenas gosto delas!
— Ninguém aqui usa meias!
— Ninguém aqui está usando meias
porque vocês estão proibindo! Estão coagindo os clientes! E eu conheço muita
gente aqui que até outro dia usava meias!
— Ninguém mais gosta de meias!
— Muitos não gostam, é verdade, mas
tem uns e outros aqui que nem sabem o que estão fazendo, apenas tiraram as
meias por tirar! Ei, vocês aí! Vocês sabem o que estão fazendo? Vocês já
pensaram no que as meias fazem pelos pés de vocês? Já pensaram que, não fossem
as meias, vocês não conseguiriam usar muitos desses sapatos?
— Será? É isso mesmo?
— Não sei... Mas eu bem que
desconfiava que alguma coisa estranha estava acontecendo...
— É, eu acho que as meias podem ser
boas... Elas não me deixam ter chulé, pelo menos.
— Mas o que é isso? Vocês estão
malucos? Senhor, estou pedindo que se retire da loja. Agora, além de se recusar
a tirar as meias, o senhor está tumultuando, colocando ideias na cabeça das
pessoas.
— Mas é lógico! As pessoas têm que
pensar! Vocês estão cerceando o direito de usar meias e de pensar! Isso não
pode, isso é um crime! Que loja é essa? Vende sapatos, mas não quer que as
pessoas escolham a forma de calçá-los? Isso sem falar no desrespeito em relação
a quem vem aqui fazer uma compra, ou seja, prestigiar a loja, fazer com que ela
prospere!
— Nós não precisamos de quem insiste
em usar meias.
— Ah, não precisam? Pois então
acabarão se ferrando! Podem até encontrar pessoas que se sintam bem sem as
meias, mas elas não são muitas. E, pouco a pouco, todas essas pessoas que hoje
tiraram as meias, um dia precisarão delas. E então irão parar de comprar nesta
loja, passarão a procurar sapatos em lojas que permitam as meias, que inclusive
sejam a favor delas!
— Você só diz isso porque é um
idiota adorador de meias! Sem meias! Sem mei-as!
— SEM MEI-AS! SEM MEI-AS!
— É isso mesmo! Até agora eu tentei
ser educado, mas o senhor continua aqui. Já que não quer tirá-las, vai sair da
loja na marra!
— Você vai ver! Um dia as pessoas
voltarão a usar meias!
— Pode até ser. Mas agora a regra é
essa. Quer fazer parte, tem que tirar as meias. Pode usar qualquer outra coisa,
menos as meias!
— Qual o problema de vocês? São
vendedores de sapatos ou contra as meias?
— Somos vendedores de sapatos. E
também contra as meias.
***
Mariela Mei é poeta e escritora. Bloga em gracadesgraca.com
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OBS: a periodicidade da coluna mudou! Por tempo indeterminado, os contos serão quinzenais ao invés de semanais.
2 comentários
É... Este conto capta o que falta muito hoje em dia. As pessoas pensarem sobre como agem e porque agem de tal forma. Poderia se aplicar a diversas situações corriqueiras. Novamente parabéns Mei.
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