terça-feira, 9 de julho de 2013

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DEPOSTO SOBRE O ABISMO - 16



Passei o dia seguinte inteiro, uma segunda-feira escaldante do fevereiro carioca, sentada com Isabel no sofá xadrez roxo e amarelo, tocando violão e cantando as músicas da nossa juventude, que começava a me parecer tão distante naqueles dias. Com o tempo, piora, concluí, porque com o tempo ela fica.
Decidi que, deliberadamente, ia esquecer o emprego perdido, a idade avançando, o apartamento mofado da Riachuelo, os meus sonhos despedaçados através dos anos, o vestido de flamboyants da Isabel. E ia imaginar, deliberadamente, que eu tinha ainda dezesseis anos e estava tocando violão por moedas na praça da torneira que insistem em chamar de chafariz. Lá, em Paraty, há quatro horas da caixa de mofo.
E gostei de pensar assim, gostei de imaginar assim, gostei de fingir que podia voltar a ser assim. Porque aquele, o tempo de Paraty e do violão tocado por moedas na praça, tinha sido o tempo da perspectiva, e o agora era o tempo da decepção. Eu devia ter feito o agora antes. Mas só descobri isso agora. What can I do?, e pensar isso me atrapalhou num acorde. Parei desajeitada uma música. Rimos. Forçadamente. Pra não quebrar o ritual.
Peguei na despensa todos os biscoitos mais gordurosos e engordativos ever. Ainda tenho um seguro desemprego e um FGTS até gordinho pra receber, ponderei, de fome eu não morro. E aquilo ali não mataria a minha fome antes que ela me matasse se isso viesse a ocorrer. Então comemos, eu e Isabel, durante a manhã e a tarde inteiras daquela segunda quente carioca, petiscos industrializados com Coca-Cola também industrializada, tocando violão naquela cidade, naquela vida, naquela amizade, naquele momento, tudo cada vez mais artificial. Como se quebrar as regras das três refeições diárias (alguns dizem que são cinco, outros que devemos comer em pequenas quantidades ao longo de todo o dia, e acho que todas as verdades estão erradas), como se quebrar as regras do dia útil correndo lá fora, com todos os seus mortos-vivos lendo e ouvindo música no metrô, sacolejando nos ônibus, ouvindo no trem a pregação dos crentes ou o forró dos nordestinos, como se quebrar qualquer regra enfim fosse sinônimo de liberdade. Mas já sabíamos que essa era a liberdade permitida, ou a enclausurada. E que aquela com que tínhamos sonhado na juventude era o de dentro de nós, aquele já contaminado e irremediável, aquele já e também artificial.
Isabel ficava pensativa algumas vezes. Não quis me dizer o que era e isso minguou a minha deliberada ilusão de tudo ser como um dia tinha sido, tão longe, na cidade de onde viemos infelizes pra encontrar infelicidade maior. Naquele tempo, da juventude, do violão na praça, Isabel não se negaria a me dizer coisa alguma. Eu não confiava mais em Isabel, actually hoje eu acho ou sei que nunca confiei mesmo, mas ela, eu pensei, tinha que confiar em mim. Ela me disse, ela me disse que só tinha a mim nesse mundo. E a sensação que eu tive pensando assim foi a mesma de dois dias antes, quando me demitiram sem que eu tivesse chance de fazer isso primeiro. Re-jei-ção.
Isabel talvez pensasse na reação do marido em casa com o sumiço dela. Talvez conjeturasse se ele estava preocupado, pondo a polícia pra procurar, ligando pra amigos, se ela tivesse algum, o que não parecia ser o caso, ligando desesperado pra hospitais e necrotérios, como faziam nas novelas antes da invenção do celular. Agora basta ligar pro celular. Mas Isabel não queria compartilhar nada comigo, achei, e talvez eu estivesse certa. Eu, e isso me frustrava, não era mais a protagonista da vida dela. Talvez ela estivesse certa.
A cena para, corta pro fim da tarde, quando há mais coisas a narrar. Ao fundo, meu violão dedilha os compassos de algum Peter Cetera triste que tocava no rádio analógico da minha casa de interior, ou talvez Radiohead, ou Coldplay, essas coisas depressivas.
A noite ia chegando, víamos pela sombra começando a engolir os prédios. Os biscoitos e a Coca-Cola iam acabando. As músicas iam rareando, e a diversão ia minguando cada vez mais. Não éramos mais jovens, não estávamos mais em Paraty.
Acho que foi por isso que Isabel teve a estapafúrdia ideia de sair de casa à noite. Diversão, ela dizia, vamos lá, Vitória, vamos fazer algo fora do comum. Uma boate, um porre como eu não tomo desde que morávamos em Paraty, eu sou sempre tão sóbria e correta e madura e adulta e todas essas coisas chatas, como é que você diz?, boring, não é? Tudo isso é muito boring! Vamos fazer algo novo, diferente, vamos. Cair na noite, encher a cara, esquecer da vida! E pensei em dizer: Isabel, ficar em casa tocando violão e comendo biscoitos é o meu diferente, porque essa vida aí que você tanto quer é o meu mais profundo cotidiano, a minha tentativa em doses cavalares de me livrar da neurose de não ter me tornado nada do que eu desejei. Mas não disse nada a Isabel. Eu estava perdendo a força que ela tanto invejava em mim desde a juventude, se é que um dia eu realmente a tive. Eu estava perdendo a coragem de dizer o que eu queria dizer a Isabel.
Olhando pela minha janela, quando a noite caiu quase por completo, Isabel pôde ver o letreiro gigante da boate de esquina. Piscando. Como um frequente Natal me visitando todos os dias, insistente, tentando me vencer pelo cansaço até me fazer admitir a minha mediocridade. Patience, foi o que comecei a assoviar. Principalmente depois que Isabel teve a ideia ainda pior de ir àquela, justo àquela boate da esquina da minha rua. Ali, onde todos me conheciam como a comedora de músicos número um do bairro, do país, do planeta. Onde eu já tinha feito uns bicos de cantora, onde eu já tinha até dançado em cima da mesa por grana entre um emprego abandonado e outro ainda por conseguir, o que tinha sido comum havia alguns anos, quando da minha ainda crença de conseguir realizar algum plano feito pra mim. O destino tinha seus planos pra mim, afinal. Lembrei do quanto gosto da palavra fate, essa que, por duas letras, não se escreve fatal. Ou talvez (game over) fatality!
E tentei convencer Isabel a desistir, mas não fui muito convincente. Só depois concluí, ou talvez apenas agora eu esteja concluindo, que não era por vergonha do que Isabel poderia vir a saber sobre mim naquele lugar que eu não queria ir até lá com ela. Afinal, ela me achava tão segura e dona de mim e cheia de coragem pra realizar todos os dias as loucuras que ela queria, mas não era capaz de fazer, que alguém dizer a ela dos músicos com quem dormi, das noites de violão (fui até aplaudida, sério mesmo, okay?), das danças sensuais em cima da mesa, dos porres que eu já tinha tomado, e foram tantos, e até de um ou dois caras, não sei, pode ter havido mais, com quem me deitei por dinheiro, alguém dizer tudo isso de mim a Isabel seria apenas corroborar a reputação que ela já acreditava ser a minha.
A minha vergonha era de estar ali com ela. Ali, naquele lugar onde todos me conheciam como a mulher talvez valente, talvez segura, talvez forte, exatamente como Isabel também achava, ali, naquele lugar onde eu tinha fama de solitária desregrada. Entrar ali ao lado daquela mulher, vestida de flamboyants, apoiada com seus noventa-ou-mais quilos nas muletas até tortas pelo peso, seria destruir a única coisa que eu tinha. Que era o que os outros achavam que eu era. Mesmo que no fundo eu não fosse. Ou fosse, não sei. Porque o que importava não era ter nem ser nem saber, mas acreditarem nisso.
Disse a ela da roupa, que com aquele vestido ela talvez não se sentisse bem por lá, ou sentisse frio, ar-condicionado era forte lá dentro etceteras. Ela tirou do meio dos peitos um cartão de crédito e perguntou se ainda tinha alguma loja aberta por ali:
–Aqui é o centro do Rio, Isabel, respondi até rindo. Isso aqui nunca dorme.
 ***
Depois de ter escolhido um vestido preto rendado que não lhe caía bem – duvidei e ainda duvido seriamente de que alguma coisa pudesse lhe cair bem –, Isabel tentou três vezes pagar com o cartão. Não conseguiu. Me olhou com ares de tristeza, ou talvez uma fúria contida daquelas que só sabe ter quem, como Isabel, nunca demonstra o que sente por vergonha ou timidez ou a-criação-que-lhe-deram-tão-repressora-e-neurótica, como ela costumava dizer tanto nos nossos anos em Paraty. E me olhando ela disse:
–Dimitri deve ter cancelado o cartão depois que eu sumi.
Quem?, eu me perguntava. O marido não era alemão? De onde saiu esse nome russo?
–Tudo bem, ela se voltou pra vendedora enquanto tirava do meio dos peitos algumas notas de cinquenta reais, pago no dinheiro. Pegou o vestido dentro de uma sacola rosa-shocking chamativa. E saímos.
Ela tomou um banho demorado na minha casa, a caixa de mofo, e se vestiu, penteou os cabelos sentada em frente ao espelho do meu guarda-roupa velho e comido de cupins, que tinham vindo de brinde com a mobília quando aluguei o apartamento. Eu me aprontei também, porque soube que não haveria meios de fazer Isabel desistir de ir àquela boate. Me resignei e, depois de pronta – eu me arrumava rápido, não precisava de muito esforço, eu ainda era muito bonita mesmo aos cinco anos pra fazer quarenta –, fiquei na sala tocando Making love out of nothing at all. Isabel me pediu maquiagem, eu não tinha. Tudo bem, ela disse, calçamos o mesmo número ainda? Calçávamos. Emprestei um sapato, e fomos embora. Antes de fechar a porta, olhei pra janela do meu apartamento, por onde entrava a luz do letreiro de neon, piscando, piscando. Merry Christimas, moldy Box. See ya.
 ***
Aquela boate sempre me lembrava alguma coisa. Uma noite, um lugar escuro, música alta, luzes foscas, Paraty. Mas eu nunca sabia exatamente o que era que aquela boate que sempre me lembrava alguma coisa me lembrava – como uma palavra que recua da ponta da língua e se esconde no breu da memória. E do jeito que eu, que sempre tinha bebido tanto, andava bebendo tanto mais, a minha memória era mesmo um labirinto brumoso. Talvez saísse o Minotauro lá de dentro. E não daria pra fugir dele com as minhas asas de cera. Se desse, pelo menos eu poderia levar Isabel pra Icária, devaneei enquanto entrávamos Isabel e eu na boate. Icária, uma ilha distante e desconhecida, com um nome tão diferente que talvez fosse o lugar limpo que Isabel tanto queria. E eu também.
Quando concluí o pensamento, estávamos nós duas em frente ao balcão do bar. Um cara de colete e gravata borboleta suava jogando garrafas de drinques pra cima, sem muita prática – ou era eu que, de tanto ver aqueles malabarismos clichês, já tinha parado de achar graça? Isabel, numa desenvoltura que pra mim era novidade, chamou o cara e pediu vodka. Pura. Eu soube que ela não ia conseguir beber.
Eu estava enganada.
Ela virou, quase num só gole. Pediu outra. O vestido preto brega de renda fazendo papos em volta da gordura do pescoço. Apoiando em mim, ela subiu no banco, deixou as muletas encostadas ao balcão. Estava feliz quando gritou, sem querer ao mesmo tempo em que a música tão alta acabava num silêncio ensurdecedor, tão clichê esse paradoxo: A noite está só começando!!!
Corei. A banda do palco não começou a tocar outra música. O silêncio, increasing more and more. Todos que estavam em volta de nós, e até os que estavam muito distantes, o que é um número bem grande de gente mesmo numa segunda à noite naquela boate, nos olharam em silêncio. Increasing, increasing. Eu mal podia recordar quando tinha sido a última vez em que eu tinha sentido vergonha. Mas fuck off. Quis querer morrer de tanta vergonha. O silêncio da banda e de todos, increasing, e o grito de Isabel quicando nas paredes daquele lugar, escuro, luzes foscas, que me lembrava alguma coisa. A noite está só começando!!!
...
...
...
...
...
–É isso aí, minha gente. Ela disse tudo. A noite é uma criança, vamos curtir! – o cantor da banda nova gritou, uma voz conhecida ele tinha. E todo mundo em volta, em u-huls e exclamações jovens demais pra mim, concordaram aplaudindo e urrando. Quis querer rir. Gargalhei. Isabel, a partir de então, se tornou a sensação da noite, começou a falar com uns caras, a conversar com umas garotas. Logo estava bebendo, e muito, cercada de gente, e muita, e a gente em redor dela increasing. Increasing tanto que, quando fui ao banheiro pela primeira vez, ouvi pessoas comentando umas com as outras sobre a gordinha legal que chapava o coco como ninguém. Amada, adorada a Isabel estava sendo, ali, naquela noite, naquela boate que sempre me lembrava alguma coisa. E eu estava com ela. Era a me-lhor-a-mi-ga-de-la. Tive orgulho de mim.
Pedi um Jack, puro. O álcool bateu forte nos biscoitos gordurosos que eu ainda não tinha digerido. Estávamos tendo um momento bom. Don’t stop me now, cause I’m having a good time, having a good time, pensei, e aquela boate pareceu me lembrar algo agora ainda com mais força – uma noite, um lugar escuro, luzes foscas, Paraty. Mas nada disso vinha à tona. Nunca.
Isabel ria. Parecia ter esquecido o marido alemão com nome russo, a filha odiada com o meu nome, ou seria eu a odiada?, a traição, a casa rica, o piano irritante, a fuga, o corpo deformado. Ela bebia, talvez pra esquecer tudo isso, ou pra fingir que tinha esquecido tudo isso, sei lá. Nos olhos de Isabel eu via o deslumbramento que só na juventude eu pude ver nos olhos de alguém, e eram os dela. Ninguém tinha olhos tão deslumbrados quanto Isabel na juventude, porque só ela via um momento qualquer como uma aventura proibida, uma exceção às regras dos pais, por causa daquelas pernas tortas. Ali, na boate escura e fosca que sempre me lembrava alguma coisa, ninguém parecia perceber as muletas de Isabel apoiadas ao balcão. Nem ela. Ela tinha passado do padrão ao especial (ela, que era sempre tão comum). E eu era a coadjuvante que ficava parada, lying ao lado das muletas não-notadas, igualmente não-notada.
Olhei o músico. Familiares, rosto e voz. Pra esse eu ainda não dei, pensei rindo. Eu tinha pedido mais um Jack e uma cerveja, outra e outra. Estava ficando bêbada mais rápido do que eu imaginava. Talvez por isso eu tenha reconhecido:
–Eduardo, murmurei. Eduardo...
 Mais velho que eu ele era. Bonito. Sempre tinha cantado muito bem, desde novo. Principalmente as turistas de Paraty. E a mim. Ele e o Júlio tinham uma dupla. Ensinei o Júlio a tocar violão, que ele me irritava tocando todo dia aquela mesma música na frente da casa amarela. E o Júlio era bom, aprendeu rápido. Eu estava ficando bêbada. O pau do Júlio era tão pequeno que ele nem conseguiu tirar meu cabaço com dezesseis anos. Eu estava mesmo bêbada. O Eduardo era tão bonito, sempre tinha sido. Aquela barba cerrada sempre, ah, se roçasse no meu pescoço a barba do Eduardo. Onde estava o Júlio? Porque não estava na banda, tocando violão ou uma guitarra pesada?, ele era bom, tocaria qualquer coisa!, e mandando ver aquele solo do Kiss? Ele gostava do Journey. O Eduardo, do Led Zeppelin. Eu, do Queen. E a Isabel, dos Bee Gees. A gente brigava por isso, que nem torcida em estádio. Eu queria falar com o Eduardo. Eu queria ver o Júlio. Eu queria vomitar. Mas não vomitei. Em vez disso, gritei:
–Eduardo!, mas minha voz não rompeu a música alta da banda dele, que tocava naquela boate escura, de luzes foscas, que sempre me lembrava alguma coisa.
E o Eduardo não me ouviu, nem parou de cantar. Então, cambaleei até o palco, me debrucei e toquei no pé do Eduardo, tão alto o palco, que girava, tudo girava. Eu estava completamente bêbada, e queria vomitar. Eduardo baixou os olhos pra mim e sorriu. Tudo cheirava a fumaça abafada de gelo seco, muita gente pulava em volta, a música era alta, os biscoitos gordurosos explodiam com o álcool no meu estômago, e tudo girava, dentro e fora do meu estômago, e a música acabou, todo mundo em volta aplaudiu, eu tentei, mas estava tonta, queria vomitar, e o Eduardo agradeceu como um astro. Bonito, eu pensei, um astro muito bonito. Ah, aquela barba no meu pescoço. E o Eduardo esperou pararem de aplaudir, tudo rodava à minha volta, e disse assim:
–Vocês são muito importantes pra nós. Sem vocês, nós nunca conseguiríamos lançar nosso primeiro CD – aplausos enlouquecidos. Parecia que todo mundo ali, menos eu e Isabel, tinha ido àquela boate só pra ver a banda do Eduardo. Menos eu e. Então conjeturei, ou só agora conjeturo, que toda a insistência de Isabel em ir até ali a excluísse do menos. E o Eduardo continuou – Em nome de todos nós da Across Infinity (que porra de nome é esse?, pensei), eu agradeço a presença de todos. Agradeço também (o mundo girava) o apoio de todos (girava demais) nessa luta que está sendo a saúde do meu irmão. (O Júlio doente? o mundo girava.) Mas ele vai sair do coma (o Júlio em coma? eu queria vomitar) e voltar a tocar guitarra pra todos vocês (eu queria muito). E agora, em homenagem a Júlio Borges, a música preferida dele (não, não, por favor, não): Lovin’, Touchin’, Squeezin’ (não, de novo nããão! Gritos, aplausos, urros, u-huls, tudo girava. Vomitei).
 ***
–Você ainda bebe um bocado, heim? – Eduardo me servia na boca um caldo de feijão. A boate ia esvaziando. Cinco da manhã.
–Nem te conto!, eu ri. O show tinha acabado, as fãs tinham agarrado os músicos e o cantor, e agora iam se dispersando. Meu vômito tinha sido pisoteado por quase todos da plateia e agora parecia já ter sido limpo. Cinco da manhã de terça-feira. Que importava?, eu não tinha mais emprego.
A Isabel estava baleada. Totalmente bêbada, debruçada sobre o balcão ao lado do Eduardo, que se sentava de frente pra mim, dando-lhe as costas. Ela conversava com o garçom dos drinques, e ele ria. Riria de qualquer coisa que ela dissesse, porque, não sei como, ela tinha se tornado a protagonista daquela noite, adorada com o vestido brega que não lhe caía bem, rodeada de gente que não via as muletas apoiadas ao balcão e a chamava ternamente de gordinha que chapava o coco. A protagonista da noite, a pessoa maneira que querem perto, que perguntam onde está quando vai por um curto tempo ao banheiro. E eu tinha sido a coadjuvante cômica a vomitar no chão:
–E o que deu na Isabel?, ele falou, sem surpresa.
–Nem te conto!
O Eduardo riu. Sorriso bonito. Aberto como o dele... Ele quem? Uma noite, luzes foscas, música alta, Paraty. Uma imagem que não vinha à tona.
–Você disse que o Júlio está em coma? – O cenho franzido da juventude voltou à testa do Eduardo, mas agora acho que era tristeza e não raiva, revolta, ódio, talvez de mim, talvez de eu ter preferido dar pro irmão dele. Agora era tristeza.
–Ele se acidentou. Caiu da lancha do nosso pai. Lembra dela?
–Queen Victoria III. (Ele teria mesmo afundado as outras duas? Ou era lenda de pescador?, mas ele não era pescador. Era um cara meio árabe, acho, eu nunca soube se sim, e rico, com dois filhos ricos, um deles muito bonito, sentado à minha frente right now. Não pensei nada disso naquele momento. Só completei:) Lembro. E lembro que o Júlio riu quando eu caí dela! – rimos os dois pra quebrar a dor do momento. E a Isabel olhava o Eduardo.
–É! Ele riu de você, sempre ria. – O Eduardo me olhou fundo, com um sorriso nos cantos dos lábios escondidos pela barba cerrada. Ele era bonito. – Pra esconder o quanto você era importante pra ele, ele ria.
Então pensei: Eduardo, pra esconder o quanto eu era importante pra você, você gritava, você se revoltava, dizia me odiar, me fuzilava com o olhar, me espancava com palavras, porque queria que eu me fizesse infeliz e rastejasse, confidenciando com as amigas o meu ódio e a minha tristeza, enxugando nas mangas da Isabel as lágrimas que eu derramaria por você nos ombros dela. Mas você nunca conseguiu. E eu dei pro seu irmão com dezesseis anos, porque ele me amava. Mas eu sabia que você também.
–O Júlio vai melhorar... Eu sei. – Eduardo acariciou os cabelos de Isabel e ela fechou os olhos como um filhote de gato, carente e chorosa àquele carinho. As unhas do Eduardo, roídas, naquela boate que sempre me lembrava alguma coisa, começavam a me lembrar alguma coisa. –E você, amiga? Que que te deu?
–Fugi de casa! – ela falou enrolando a língua bêbada.
–Ué? De novo? – ele riu.
–Fugi de casa e vim pro Rio. Aí casei. Aí fugi de novo.
Eduardo me olhou duvidando. Afirmei com a cabeça. Ele pareceu se preocupar. Não era assim atencioso na juventude. Parecia que alguma força muito potente tinha transformado aquele velho ranzinza, talvez adolescente rebelde sem causa, num príncipe encantado sexy, herói de novela das oito, de comédia romântica, de seriado de domingo, daqueles carinhosos e fortes, bonitos e sensíveis, que só existem na ficção, e com uma barba que não era ficção, e que eu queria no meu pescoço, roçando.
Isabel olhava o Eduardo. Insistente. Ele comeu alguma coisa, falando com a boca cheia (ele tinha essa merda de mania!) que não tinha comido nada o dia inteiro, tinha ido nuns programas com a banda, divulgar o CD, tevê, rádio, essas coisas, tudo gente mesquinha, nem um cafezinho, ele tava com fome, com sono, às vezes queria desistir, tinham que pagar caro o guitarrista free lancer que tinham posto no lugar do Júlio, estavam ganhando menos agora, mas ele estava feliz, iam sair em turnê, o Júlio tinha dado um gás depois de entrar na banda, valia a pena, era um sonho realizado, sabe?
–Não, respondi. Eu nunca realizei um sonho.
Ele me olhou mastigando mais devagar, como se me desse a deixa da cena. Sobem os créditos. E no próximo capítulo... Quis lhe contar todas as minhas desgraças, como não queria contar à Isabel. Ele parecia estar me dando espaço, como se adivinhasse a minha vida degradante ou talvez pelo menos a minha necessidade de dividir algo sério e grande com alguém. Mas não deu tempo. Os músicos chegaram, abraçaram, deram parabéns, ele me apresentou, me cumprimentaram, dois me olharam muito e eu gostei muito de ser muito olhada, que eu estava envelhecendo e isso já não era mais frequente como antes. E os músicos perguntaram se o Eduardo ia embora com eles, e ele disse que não, que tinha encontrado duas amigas de infância e que ia ficar mais ali com elas. E acarinhava Isabel com as unhas roídas dele, que me lembravam alguma coisa. Isabel dormia com a cabeça virada pra ele, como se o olhasse insistente, também durante o sono.
–Estou de carro. Levo vocês pra casa, ele disse depois de os músicos se afastarem.
–Não precisa, falei. Moro no prédio ao lado.
–Então acompanho vocês até a porta de casa – e ele sorria.
Dentes brancos por trás da barba preta, pele morena, muito escura, por baixo da blusa branca. E me lembrei daquela pele branca, muito clara, por baixo da blusa preta. De quem? E o sorriso do Eduardo, aberto. Exatamente como o de quem? Eu não sabia. Eu não queria saber. Devia ser aquela boate, que sempre me lembrava alguma coisa, que estava me lembrando alguma coisa que não foi, ou que foi, mas não importava. O Eduardo era bonito, o Eduardo estava ali, o Eduardo, somente o Eduardo importava. Quis aquela barba cerrada e preta no meu pescoço, roçando, e de repente me ocorreu perguntar:
–Foi esse o pedido que você me fez?
–Hã?
–Sempre quis saber se atendi mesmo algum pedido que tenham me feito – confessei. Eu tinha vontade de confessar tudo ao Eduardo, como não tinha vontade de confessar à Isabel. – Eu nunca soube ao certo se inventei essa história de que todo mundo pode operar milagres ou se, algum dia, acreditei mesmo nisso. Você pediu a banda? Eu atendi?
Ele olhou os próprios sapatos, um par de tênis All Star preto com uma faixa vermelha junto à borda branca, o mais comum dos pares de tênis All Star. Achei que o Eduardo fosse voltar os olhos pra mim com o cenho franzido da juventude, aquele de raiva, não o de agora, esse de tristeza, ou eu achava que era. Achei que o Eduardo fosse me mandar à merda, como na juventude, ou me dizer que eu era uma babaca, que o meu nome devia ser Vítor, que eu era mais macho que mulher. Achei que o Eduardo fosse levantar a voz – aquela que cantando era bonita – tão alto quanto ele sabia fazer quando ficava com raiva de mim – o que era sempre, ou ele fingia assim, e fingia bem – e fosse me gritar novamente que tudo aquilo era uma babaquice, que eu era uma idiota, e que ele não tinha feito pedido nenhum. Ele sempre me disse que não tinha feito pedido nenhum.
Mas em vez disso, ele continuou olhando os sapatos, raspando a sola de um sobre o branco do outro, deixando sujo o branco do outro, como se fazer isso pudesse lhe trazer à boca uma resposta melhor do que a que ele me deu, uma que mantivesse a mentira de juventude de que ele não tinha feito pedido nenhum. E ele falou, com os olhos baixos falou:
–Não. Não foi a banda que eu pedi não.
E levantou os olhos. E olhou com aqueles olhos, escuros como os de quem?, bem fundo nos meus olhos. E ele falou, com os olhos nos meus olhos falou:
–Mas você atendeu. Acho que atende sempre, Vitória.
Meu nome pesou naquela frase, naquela voz – bonita a voz dele, bonito ele –, e ele levantou do banco onde se sentava, acho que confuso, ou talvez triste. Falou baixo com Isabel tentando acordá-la, familiar, como se vissem todo dia. Senti inveja, mas durou pouco. Que ele falava com ela, mas olhava pra mim, fundo nos meus olhos claros com os escuros dele. Com carinho, Eduardo tentava acordar Isabel, as unhas roídas nos cabelos dela, fazendo carinho. Quis querer saber o que aquilo me lembrava, um sofá velho xadrez roxo e amarelo, um homem que eu nunca mais vi, tanto tempo atrás. Mas aquela boate sempre me lembrava alguma coisa. E não importava. Só o Eduardo importava. Quis querer saber qual tinha sido o pedido que eu tinha realizado. Quis querer saber o que o Eduardo tinha me pedido um dia, na lancha Queen Victoria III do pai dele em Paraty. Mas não importava. Só o Eduardo importava.
Talvez eu não tenha pensado assim, que só ele importava, com tanta certeza ou força senão agora, tantos anos depois. Naquele momento, naquele dia, naquelas cinco da manhã de uma terça-feira quente carioca, eu não devo ter pensado assim. Não deu tempo. Isabel não acordou, Eduardo desistiu de acordar Isabel. E muito rápido ele se voltou pra mim, certeiro, ensaiado, ação, gravando, cingiu seus braços em redor da minha cintura, apertado, uniu todo o seu tronco em todo o meu tronco, éramos quase da mesma altura, pude sentir um sexo duro, forte, alto tocar em mim, e ele me cravou na boca um beijo longo, me apertando, me abraçando, colocando dentro da minha boca sua língua gelada com gosto de carne e arroz, um cheiro bom ele tinha, a nuca suada do show, e então afastou seu rosto do meu e me disse: desculpe!, com seu corpo colado no meu ainda, quis querer dizer que ele devia ter me esperado escovar os dentes, riríamos os dois, eu e aquele novo Eduardo tão diferente do antigo, tão carinhoso e gentil como não era o antigo, mas bonito como antigamente, com o charme de homem que chega aos quarenta que ele não tinha antigamente, mas eu não disse nada, dei um sorriso, achei que o meu destino era mesmo e pra sempre dar pros cantores daquela boate, quis chamá-lo pro meu apartamento, mas.
Lembrei Isabel, que estava dormindo no meu único quarto, com a minha única cama, o único colchão, o único pequeno e pífio, gosto dessa palavra, conforto da minha vida desgraçada. Eu não podia chamar o Eduardo pro meu apartamento. E fiquei sem palavras, olhando pra ele como a imbecil de que ele na juventude adorava me chamar. Pensei: quero, eu quero tanto essa barba no meu pescoço roçando. Foi então que.
O Eduardo se curvou. Beijou meu pescoço. Aquela barba. Ah. Aquela barba. No meu pescoço. Roçando no meu pescoço. Aquele corpo. Quente. Me abraçando. Colado no meu corpo. E duro. Forte. Alto. Me apertando. Me tocando. Enquanto, de olhos virados, eu sentia todo o meu corpo explodir. Vontade. Eu tinha vontade. De ter o Eduardo. Agora. Já. Sobre mim o Eduardo eu queria. Mas não podia. E amaldiçoei Isabel. Quis Isabel longe. Quis nunca mais Isabel perto. Só o Eduardo perto. Como tinha sido com ele. Mas ele quem? Eu acariciava as costas do Eduardo. Como fiz com as dele. Mas ele quem? E o Eduardo era alto. Era magro. Era forte. Era bonito. Como ele. Mas ele quem? Não importava. Quis que não importasse. Que nada mais importasse. Quis querer cair naquele abraço. Naquele beijo. Naquela barba no meu pescoço. Fechei os olhos. Abracei o Eduardo. Apertado. Muito apertado. Cada vez mais apertado contra mim. E esqueci. Isabel. Minha casa mofada. Minha vida miserável. O emprego perdido. As lembranças que aquela boate trazia. Esqueci. E só lembrei. Só pensei. Só senti. O Eduardo.
Mas Isabel tinha aberto os olhos. Eu não sabia. E olhava a mim. E ao Eduardo.
 ***
Carregada. Ela foi semidesperta e carregada pela rua, a Isabel. Eduardo nos acompanhou até o prédio ao lado da boate, aquele onde eu vivia, encerrada na caixa de mofo. Quase tínhamos esquecido as muletas tortas – como aquelas pernas tortas – apoiadas ao balcão. Elas não tinham feito a mínima diferença na noite de gala da protagonista Isabel anyway. A protagonista que voltava bêbada pra casa, carregada pelos coadjuvantes que enchem linguiça na história com seus enredos insignificantes. A protagonista que olhava o coadjuvante cantor, que olhava a coadjuvante cômica a vomitar no chão, que também olhava o coadjuvante cantor. Quem olha a protagonista?, pensei. Ou só penso agora.
Na porta do prédio, pedi que Eduardo subisse. Eu tinha muita vergonha da minha casa, mofada e cheia de cupins, móveis velhos, umidade e paredes crespas – um depósito das minhas inutilidades apaixonadas, pensei sem dar importância. Porque de fato não importava, nada mais, só o Eduardo, e eu queria que ele subisse. Eu não me importava de revelar a ele a minha vida miserável. Eu queria dividir tudo com ele. Cada miséria, cada mofo, cada cupim, cada cigarro fiado e xícara de café sem açúcar e quase sem água, meu espelho partido ao meio onde eu via a minha imagem igualmente partida todos os dias ao acordar. Eu queria dividir com Eduardo todo aquele mundo cruel onde eu vivia, como não queria mais dividir com Isabel. Eu queria Isabel longe. Eu queria nunca mais Isabel perto.
Mas era pela Isabel, menti, que eu queria que ele subisse. Pedi que o Eduardo me ajudasse a levá-la até a cama. Eu não ia conseguir carregá-la por nove andares, nem mesmo indo no elevador, aquele que vivia quebrado. (Nove andares! Puta que paralho!, o Eduardo exclamou – um sorriso aberto como o dele. Ele quem?) A desculpa de carregar Isabel era em parte verdade. Ela era pesada. Muito. Mas eu queria era mesmo ter o Eduardo perto mais. E por isso, na porta do prédio, pedi que ele subisse.
E ele subiu.
No elevador, aquele que vivia quebrado, Isabel, que olhava Eduardo, apagou nos braços do coadjuvante cantor. Agora ele ia ter que levar no colo a protagonista e deitá-la na cama, cobri-la como nas novelas, comédias românticas, seriados americanos, a velha cena de amor platônico mal resolvido. Mas nem o coadjuvante mais forte do mundo conseguiria levantar a protagonista pesada que era Isabel. Ri desse pensamento. Ele achou que eu ria pra ele. Riu pra mim o riso aberto, como o dele quem?, e aproveitou o momento pra me cravar um beijo doce na orelha, ah, aquela barba, estalando no fundo do tímpano. Gostei.
Deixamos Isabel deitada na cama. O corpo pesado afundando o colchão mole demais. Olhei pra ela, meu corpo cansado, e quis estar ali deitada (de preferência junto com o Eduardo). Mais um dia naquele sofá duro da porra eu ia passar. Raiva. Eduardo pôs o braço sobre os meus ombros. Carinho bom. Melhor que a raiva. E olhamos em silêncio a protagonista adormecida, que olhava o coadjuvante cantor, pareceu, mesmo durante o sono. Os olhos de Isabel, cerrados, voltados pra ele, pro Eduardo, que agora voltava os olhos abertos, escuros como os de quem?, pra mim.
Virei pra ele. Ficamos novamente frente a frente. Novamente, ele me apertava, corpo contra corpo. Tive vontade de pedir tighter, please, e ele me beijou novamente, duramente, longamente. Quis com ainda mais força estar sobre aquela cama, o Eduardo sobre mim, a barba do Eduardo sobre o meu pescoço, roçando, e pela primeira vez, primeirúltima who knows?, formulei o que por tantos anos eu havia evitado (sim, evitado, porque, só agora me ocorre, eu sempre havia pensado assim): te odeio, Isabel. E com um quê de pedido, de súplica, de oração, mentalizei entoando Never come near me again. Do you really think I need you?
Pensei: quem sabe o sofá? Eu queria tanto o Eduardo. E a Isabel estava num sono tão profundo que nem se daria conta! Mas eu estava com medo. De quê? Do desfecho, talvez, só agora penso, que eu talvez pressentisse sem certezas. Mas eu não sabia. Ainda não sabia que tinha sido um pedido, feito de mim pra mim, aquele verso entoado de Space Dye-Vest. Eu ainda não sabia mesmo nada, do porvir eu nunca tinha sabido nada (só esperado, o que foi ruim, porque o esperado nunca chegou). Naquele momento, acompanhando o Eduardo até a porta, eu só sabia do medo. Nem sabia do que, só do medo.
 ***
–Quero ver o Júlio.
Eduardo me beijava.
–Te levo.
Eduardo me beijava.
–Quero ver você.
Eduardo me beijava.
–Me chama. Eu venho.
Eduardo me beijava.
 ***
Quando ele foi embora e fechei a porta na minha frente, a tampa da caixa de mofo sobre mim, fui até a janela e olhei abaixo o abismo de nove andares. Uns cansativos minutos depois, Eduardo apareceu lá embaixo, olhou pra cima, talvez na esperança de me ver, mas acho que não me viu. Ou que sorriu pra mim. Amanhecia. Ele entrou num Siena vermelho parado junto ao meio-fio. E sumiu.
Quis que ele voltasse. Isso foi um pedido.

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