Passei o dia seguinte inteiro, uma
segunda-feira escaldante do fevereiro carioca, sentada com Isabel no sofá xadrez
roxo e amarelo, tocando violão e cantando as músicas da nossa juventude, que
começava a me parecer tão distante naqueles dias. Com o tempo, piora, concluí,
porque com o tempo ela fica.
Decidi que, deliberadamente, ia esquecer o
emprego perdido, a idade avançando, o apartamento mofado da Riachuelo, os meus
sonhos despedaçados através dos anos, o vestido de flamboyants da Isabel. E ia
imaginar, deliberadamente, que eu tinha ainda dezesseis anos e estava tocando
violão por moedas na praça da torneira que insistem em chamar de chafariz. Lá,
em Paraty, há quatro horas da caixa de mofo.
E gostei de pensar assim, gostei de
imaginar assim, gostei de fingir que podia voltar a ser assim. Porque aquele, o
tempo de Paraty e do violão tocado por moedas na praça, tinha sido o tempo da
perspectiva, e o agora era o tempo da decepção. Eu devia ter feito o agora
antes. Mas só descobri isso agora. What can I do?, e pensar isso me atrapalhou
num acorde. Parei desajeitada uma música. Rimos. Forçadamente. Pra não quebrar
o ritual.
Peguei na despensa todos os biscoitos mais
gordurosos e engordativos ever. Ainda tenho um seguro desemprego e um FGTS até
gordinho pra receber, ponderei, de fome eu não morro. E aquilo ali não mataria
a minha fome antes que ela me matasse se isso viesse a ocorrer. Então comemos,
eu e Isabel, durante a manhã e a tarde inteiras daquela segunda quente carioca,
petiscos industrializados com Coca-Cola também industrializada, tocando violão
naquela cidade, naquela vida, naquela amizade, naquele momento, tudo cada vez
mais artificial. Como se quebrar as regras das três refeições diárias (alguns
dizem que são cinco, outros que devemos comer em pequenas quantidades ao longo
de todo o dia, e acho que todas as verdades estão erradas), como se quebrar as
regras do dia útil correndo lá fora, com todos os seus mortos-vivos lendo e
ouvindo música no metrô, sacolejando nos ônibus, ouvindo no trem a pregação dos
crentes ou o forró dos nordestinos, como se quebrar qualquer regra enfim fosse
sinônimo de liberdade. Mas já sabíamos que essa era a liberdade permitida, ou a
enclausurada. E que aquela com que tínhamos sonhado na juventude era o de
dentro de nós, aquele já contaminado e irremediável, aquele já e também
artificial.
Isabel ficava pensativa algumas vezes. Não
quis me dizer o que era e isso minguou a minha deliberada ilusão de tudo ser
como um dia tinha sido, tão longe, na cidade de onde viemos infelizes pra
encontrar infelicidade maior. Naquele tempo, da juventude, do violão na praça,
Isabel não se negaria a me dizer coisa alguma. Eu não confiava mais em Isabel,
actually hoje eu acho ou sei que nunca confiei mesmo, mas ela, eu pensei, tinha que confiar em mim. Ela me disse, ela me disse que só tinha a mim nesse
mundo. E a sensação que eu tive pensando assim foi a mesma de dois dias antes,
quando me demitiram sem que eu tivesse chance de fazer isso primeiro.
Re-jei-ção.
Isabel talvez pensasse na reação do marido
em casa com o sumiço dela. Talvez conjeturasse se ele estava preocupado, pondo
a polícia pra procurar, ligando pra amigos, se ela tivesse algum, o que não
parecia ser o caso, ligando desesperado pra hospitais e necrotérios, como
faziam nas novelas antes da invenção do celular. Agora basta ligar pro celular.
Mas Isabel não queria compartilhar nada comigo, achei, e talvez eu estivesse
certa. Eu, e isso me frustrava, não era mais a protagonista da vida dela.
Talvez ela estivesse certa.
A cena para, corta pro fim da tarde,
quando há mais coisas a narrar. Ao fundo, meu violão dedilha os compassos de
algum Peter Cetera triste que tocava no rádio analógico da minha casa de
interior, ou talvez Radiohead, ou Coldplay, essas coisas depressivas.
A noite ia chegando, víamos pela sombra
começando a engolir os prédios. Os biscoitos e a Coca-Cola iam acabando. As
músicas iam rareando, e a diversão ia minguando cada vez mais. Não éramos mais
jovens, não estávamos mais em Paraty.
Acho que foi por isso que Isabel teve a
estapafúrdia ideia de sair de casa à noite. Diversão, ela dizia, vamos lá,
Vitória, vamos fazer algo fora do comum. Uma boate, um porre como eu não tomo
desde que morávamos em Paraty, eu sou sempre tão sóbria e correta e madura e
adulta e todas essas coisas chatas, como é que você diz?, boring, não é? Tudo
isso é muito boring! Vamos fazer algo novo, diferente, vamos. Cair na noite,
encher a cara, esquecer da vida! E pensei em dizer: Isabel, ficar em casa
tocando violão e comendo biscoitos é o meu diferente, porque essa vida aí que
você tanto quer é o meu mais profundo cotidiano, a minha tentativa em doses
cavalares de me livrar da neurose de não ter me tornado nada do que eu desejei.
Mas não disse nada a Isabel. Eu estava perdendo a força que ela tanto invejava
em mim desde a juventude, se é que um dia eu realmente a tive. Eu estava
perdendo a coragem de dizer o que eu queria dizer a Isabel.
Olhando pela minha janela, quando a noite
caiu quase por completo, Isabel pôde ver o letreiro gigante da boate de
esquina. Piscando. Como um frequente Natal me visitando todos os dias,
insistente, tentando me vencer pelo cansaço até me fazer admitir a minha
mediocridade. Patience, foi o que comecei a assoviar. Principalmente depois que
Isabel teve a ideia ainda pior de ir àquela, justo àquela boate da esquina da
minha rua. Ali, onde todos me conheciam como a comedora de músicos número um do
bairro, do país, do planeta. Onde eu já tinha feito uns bicos de cantora, onde
eu já tinha até dançado em cima da mesa por grana entre um emprego abandonado e
outro ainda por conseguir, o que tinha sido comum havia alguns anos, quando da
minha ainda crença de conseguir realizar algum plano feito pra mim. O destino
tinha seus planos pra mim, afinal. Lembrei do quanto gosto da palavra fate,
essa que, por duas letras, não se escreve fatal. Ou talvez (game over)
fatality!
E tentei convencer Isabel a desistir, mas
não fui muito convincente. Só depois concluí, ou talvez apenas agora eu esteja
concluindo, que não era por vergonha do que Isabel poderia vir a saber sobre
mim naquele lugar que eu não queria ir até lá com ela. Afinal, ela me achava
tão segura e dona de mim e cheia de coragem pra realizar todos os dias as
loucuras que ela queria, mas não era capaz de fazer, que alguém dizer a ela dos
músicos com quem dormi, das noites de violão (fui até aplaudida, sério mesmo,
okay?), das danças sensuais em cima da mesa, dos porres que eu já tinha tomado,
e foram tantos, e até de um ou dois caras, não sei, pode ter havido mais, com
quem me deitei por dinheiro, alguém dizer tudo isso de mim a Isabel seria
apenas corroborar a reputação que ela já acreditava ser a minha.
A minha vergonha era de estar ali com ela.
Ali, naquele lugar onde todos me conheciam como a mulher talvez valente, talvez
segura, talvez forte, exatamente como Isabel também achava, ali, naquele lugar
onde eu tinha fama de solitária desregrada. Entrar ali ao lado daquela mulher,
vestida de flamboyants, apoiada com seus noventa-ou-mais quilos nas muletas até
tortas pelo peso, seria destruir a única coisa que eu tinha. Que era o que os
outros achavam que eu era. Mesmo que no fundo eu não fosse. Ou fosse, não sei.
Porque o que importava não era ter nem ser nem saber, mas acreditarem nisso.
Disse a ela da roupa, que com aquele
vestido ela talvez não se sentisse bem por lá, ou sentisse frio,
ar-condicionado era forte lá dentro etceteras. Ela tirou do meio dos peitos um
cartão de crédito e perguntou se ainda tinha alguma loja aberta por ali:
–Aqui é o centro do Rio, Isabel, respondi
até rindo. Isso aqui nunca dorme.
***
Depois de ter escolhido um vestido preto
rendado que não lhe caía bem – duvidei e ainda duvido seriamente de que alguma
coisa pudesse lhe cair bem –, Isabel tentou três vezes pagar com o cartão. Não
conseguiu. Me olhou com ares de tristeza, ou talvez uma fúria contida daquelas
que só sabe ter quem, como Isabel, nunca demonstra o que sente por vergonha ou
timidez ou a-criação-que-lhe-deram-tão-repressora-e-neurótica, como ela
costumava dizer tanto nos nossos anos em Paraty. E me olhando ela disse:
–Dimitri deve ter cancelado o cartão
depois que eu sumi.
Quem?, eu me perguntava. O marido não era
alemão? De onde saiu esse nome russo?
–Tudo bem, ela se voltou pra vendedora
enquanto tirava do meio dos peitos algumas notas de cinquenta reais, pago no
dinheiro. Pegou o vestido dentro de uma sacola rosa-shocking chamativa. E saímos.
Ela tomou um banho demorado na minha casa,
a caixa de mofo, e se vestiu, penteou os cabelos sentada em frente ao espelho
do meu guarda-roupa velho e comido de cupins, que tinham vindo de brinde com a
mobília quando aluguei o apartamento. Eu me aprontei também, porque soube que
não haveria meios de fazer Isabel desistir de ir àquela boate. Me resignei e,
depois de pronta – eu me arrumava rápido, não precisava de muito esforço, eu
ainda era muito bonita mesmo aos cinco anos pra fazer quarenta –, fiquei na
sala tocando Making love out of nothing at all. Isabel me pediu maquiagem, eu
não tinha. Tudo bem, ela disse, calçamos o mesmo número ainda? Calçávamos. Emprestei
um sapato, e fomos embora. Antes de fechar a porta, olhei pra janela do meu
apartamento, por onde entrava a luz do letreiro de neon, piscando, piscando. Merry
Christimas, moldy Box. See ya.
***
Aquela boate sempre me lembrava alguma
coisa. Uma noite, um lugar escuro, música alta, luzes foscas, Paraty. Mas eu
nunca sabia exatamente o que era que aquela boate que sempre me lembrava alguma
coisa me lembrava – como uma palavra que recua da ponta da língua e se esconde
no breu da memória. E do jeito que eu, que sempre tinha bebido tanto, andava
bebendo tanto mais, a minha memória era mesmo um labirinto brumoso. Talvez
saísse o Minotauro lá de dentro. E não daria pra fugir dele com as minhas asas
de cera. Se desse, pelo menos eu poderia levar Isabel pra Icária, devaneei
enquanto entrávamos Isabel e eu na boate. Icária, uma ilha distante e
desconhecida, com um nome tão diferente que talvez fosse o lugar limpo que
Isabel tanto queria. E eu também.
Quando concluí o pensamento, estávamos nós
duas em frente ao balcão do bar. Um cara de colete e gravata borboleta suava
jogando garrafas de drinques pra cima, sem muita prática – ou era eu que, de
tanto ver aqueles malabarismos clichês, já tinha parado de achar graça? Isabel,
numa desenvoltura que pra mim era novidade, chamou o cara e pediu vodka. Pura.
Eu soube que ela não ia conseguir beber.
Eu estava enganada.
Ela virou, quase num só gole. Pediu outra.
O vestido preto brega de renda fazendo papos em volta da gordura do pescoço.
Apoiando em mim, ela subiu no banco, deixou as muletas encostadas ao balcão.
Estava feliz quando gritou, sem querer ao mesmo tempo em que a música tão alta
acabava num silêncio ensurdecedor, tão clichê esse paradoxo: A noite está só
começando!!!
Corei. A banda do palco não começou a
tocar outra música. O
silêncio, increasing more and more. Todos que estavam em volta de nós, e
até os que estavam muito distantes, o que é um número bem grande de gente mesmo
numa segunda à noite naquela boate, nos olharam em silêncio. Increasing,
increasing. Eu mal podia recordar quando tinha sido a última vez em que eu
tinha sentido vergonha. Mas fuck off. Quis querer morrer de tanta vergonha. O
silêncio da banda e de todos, increasing, e o grito de Isabel quicando nas
paredes daquele lugar, escuro, luzes foscas, que me lembrava alguma coisa. A
noite está só começando!!!
...
...
...
...
...
–É isso aí, minha gente. Ela disse tudo. A
noite é uma criança, vamos curtir! – o cantor da banda nova gritou, uma voz
conhecida ele tinha. E todo mundo em volta, em u-huls e exclamações jovens
demais pra mim, concordaram aplaudindo e urrando. Quis querer rir. Gargalhei.
Isabel, a partir de então, se tornou a sensação da noite, começou a falar com
uns caras, a conversar com umas garotas. Logo estava bebendo, e muito, cercada
de gente, e muita, e a gente em redor dela increasing. Increasing tanto que,
quando fui ao banheiro pela primeira vez, ouvi pessoas comentando umas com as
outras sobre a gordinha legal que chapava o coco como ninguém. Amada, adorada a
Isabel estava sendo, ali, naquela noite, naquela boate que sempre me lembrava
alguma coisa. E eu estava com ela. Era a me-lhor-a-mi-ga-de-la. Tive orgulho de
mim.
Pedi um Jack, puro. O álcool bateu forte
nos biscoitos gordurosos que eu ainda não tinha digerido. Estávamos tendo um
momento bom. Don’t stop me now, cause I’m having a good time, having a good
time, pensei, e aquela boate pareceu me lembrar algo agora ainda com mais força
– uma noite, um lugar escuro, luzes foscas, Paraty. Mas nada disso vinha à
tona. Nunca.
Isabel ria. Parecia ter esquecido o marido
alemão com nome russo, a filha odiada com o meu nome, ou seria eu a odiada?, a traição,
a casa rica, o piano irritante, a fuga, o corpo deformado. Ela bebia, talvez
pra esquecer tudo isso, ou pra fingir que tinha esquecido tudo isso, sei lá.
Nos olhos de Isabel eu via o deslumbramento que só na juventude eu pude ver nos
olhos de alguém, e eram os dela. Ninguém tinha olhos tão deslumbrados quanto
Isabel na juventude, porque só ela via um momento qualquer como uma aventura
proibida, uma exceção às regras dos pais, por causa daquelas pernas tortas.
Ali, na boate escura e fosca que sempre me lembrava alguma coisa, ninguém
parecia perceber as muletas de Isabel apoiadas ao balcão. Nem ela. Ela tinha
passado do padrão ao especial (ela, que era sempre tão comum). E eu era a
coadjuvante que ficava parada, lying ao lado das muletas não-notadas, igualmente
não-notada.
Olhei o músico. Familiares, rosto e voz.
Pra esse eu ainda não dei, pensei rindo. Eu tinha pedido mais um Jack e uma
cerveja, outra e outra. Estava ficando bêbada mais rápido do que eu imaginava. Talvez
por isso eu tenha reconhecido:
–Eduardo, murmurei. Eduardo...
Mais
velho que eu ele era. Bonito. Sempre tinha cantado muito bem, desde novo.
Principalmente as turistas de Paraty. E a mim. Ele e o Júlio tinham uma dupla.
Ensinei o Júlio a tocar violão, que ele me irritava tocando todo dia aquela mesma
música na frente da casa amarela. E o Júlio era bom, aprendeu rápido. Eu estava
ficando bêbada. O pau do Júlio era tão pequeno que ele nem conseguiu tirar meu
cabaço com dezesseis anos. Eu estava mesmo bêbada. O Eduardo era tão bonito,
sempre tinha sido. Aquela barba cerrada sempre, ah, se roçasse no meu pescoço a
barba do Eduardo. Onde estava o Júlio? Porque não estava na banda, tocando
violão ou uma guitarra pesada?, ele era bom, tocaria qualquer coisa!, e
mandando ver aquele solo do Kiss? Ele gostava do Journey. O Eduardo, do Led
Zeppelin. Eu, do Queen. E a Isabel, dos Bee Gees. A gente brigava por isso, que
nem torcida em estádio. Eu queria falar com o Eduardo. Eu queria ver o Júlio.
Eu queria vomitar. Mas não vomitei. Em vez disso, gritei:
–Eduardo!, mas minha voz não rompeu a
música alta da banda dele, que tocava naquela boate escura, de luzes foscas,
que sempre me lembrava alguma coisa.
E o Eduardo não me ouviu, nem parou de
cantar. Então, cambaleei até o palco, me debrucei e toquei no pé do Eduardo,
tão alto o palco, que girava, tudo girava. Eu estava completamente bêbada, e
queria vomitar. Eduardo baixou os olhos pra mim e sorriu. Tudo cheirava a
fumaça abafada de gelo seco, muita gente pulava em volta, a música era alta, os
biscoitos gordurosos explodiam com o álcool no meu estômago, e tudo girava,
dentro e fora do meu estômago, e a música acabou, todo mundo em volta aplaudiu,
eu tentei, mas estava tonta, queria vomitar, e o Eduardo agradeceu como um
astro. Bonito, eu pensei, um astro muito bonito. Ah, aquela barba no meu
pescoço. E o Eduardo esperou pararem de aplaudir, tudo rodava à minha volta, e
disse assim:
–Vocês são muito importantes pra nós. Sem
vocês, nós nunca conseguiríamos lançar nosso primeiro CD – aplausos
enlouquecidos. Parecia que todo mundo ali, menos eu e Isabel, tinha ido àquela
boate só pra ver a banda do Eduardo. Menos eu e. Então conjeturei, ou só agora
conjeturo, que toda a insistência de Isabel em ir até ali a excluísse do menos. E o Eduardo continuou – Em nome
de todos nós da Across Infinity (que porra de nome é esse?, pensei), eu
agradeço a presença de todos. Agradeço também (o mundo girava) o apoio de todos
(girava demais) nessa luta que está sendo a saúde do meu irmão. (O Júlio
doente? o mundo girava.) Mas ele vai sair do coma (o Júlio em coma? eu queria
vomitar) e voltar a tocar guitarra pra todos vocês (eu queria muito). E agora,
em homenagem a Júlio Borges, a música preferida dele (não, não, por favor,
não): Lovin’, Touchin’, Squeezin’ (não, de novo nããão! Gritos, aplausos, urros,
u-huls, tudo girava. Vomitei).
***
–Você ainda bebe um bocado, heim? –
Eduardo me servia na boca um caldo de feijão. A boate ia esvaziando. Cinco da
manhã.
–Nem te conto!, eu ri. O show tinha
acabado, as fãs tinham agarrado os músicos e o cantor, e agora iam se
dispersando. Meu vômito tinha sido pisoteado por quase todos da plateia e agora
parecia já ter sido limpo. Cinco da manhã de terça-feira. Que importava?, eu
não tinha mais emprego.
A Isabel estava baleada. Totalmente
bêbada, debruçada sobre o balcão ao lado do Eduardo, que se sentava de frente
pra mim, dando-lhe as costas. Ela conversava com o garçom dos drinques, e ele
ria. Riria de qualquer coisa que ela dissesse, porque, não sei como, ela tinha
se tornado a protagonista daquela noite, adorada com o vestido brega que não
lhe caía bem, rodeada de gente que não via as muletas apoiadas ao balcão e a
chamava ternamente de gordinha que chapava o coco. A protagonista da noite, a
pessoa maneira que querem perto, que perguntam onde está quando vai por um
curto tempo ao banheiro. E eu tinha sido a coadjuvante cômica a vomitar no
chão:
–E o que deu na Isabel?, ele falou, sem
surpresa.
–Nem te conto!
O Eduardo riu. Sorriso bonito. Aberto como
o dele... Ele quem? Uma noite, luzes foscas, música alta, Paraty. Uma imagem
que não vinha à tona.
–Você disse que o Júlio está em coma? – O
cenho franzido da juventude voltou à testa do Eduardo, mas agora acho que era
tristeza e não raiva, revolta, ódio, talvez de mim, talvez de eu ter preferido
dar pro irmão dele. Agora era tristeza.
–Ele se acidentou. Caiu da lancha do nosso
pai. Lembra dela?
–Queen Victoria III. (Ele teria mesmo
afundado as outras duas? Ou era lenda de pescador?, mas ele não era pescador.
Era um cara meio árabe, acho, eu nunca soube se sim, e rico, com dois filhos
ricos, um deles muito bonito, sentado à minha frente right now. Não pensei nada
disso naquele momento. Só completei:) Lembro. E lembro que o Júlio riu quando
eu caí dela! – rimos os dois pra quebrar a dor do momento. E a Isabel olhava o
Eduardo.
–É! Ele riu de você, sempre ria. – O
Eduardo me olhou fundo, com um sorriso nos cantos dos lábios escondidos pela
barba cerrada. Ele era bonito. – Pra esconder o quanto você era importante pra
ele, ele ria.
Então pensei: Eduardo, pra esconder o
quanto eu era importante pra você, você gritava, você se revoltava, dizia me odiar,
me fuzilava com o olhar, me espancava com palavras, porque queria que eu me
fizesse infeliz e rastejasse, confidenciando com as amigas o meu ódio e a minha
tristeza, enxugando nas mangas da Isabel as lágrimas que eu derramaria por você
nos ombros dela. Mas você nunca conseguiu. E eu dei pro seu irmão com dezesseis
anos, porque ele me amava. Mas eu sabia que você também.
–O Júlio vai melhorar... Eu sei. – Eduardo
acariciou os cabelos de Isabel e ela fechou os olhos como um filhote de gato,
carente e chorosa àquele carinho. As unhas do Eduardo, roídas, naquela boate
que sempre me lembrava alguma coisa, começavam a me lembrar alguma coisa. –E
você, amiga? Que que te deu?
–Fugi de casa! – ela falou enrolando a
língua bêbada.
–Ué? De novo? – ele riu.
–Fugi de casa e vim pro Rio. Aí casei. Aí
fugi de novo.
Eduardo me olhou duvidando. Afirmei com a
cabeça. Ele pareceu se preocupar. Não era assim atencioso na juventude. Parecia
que alguma força muito potente tinha transformado aquele velho ranzinza, talvez
adolescente rebelde sem causa, num príncipe encantado sexy, herói de novela das
oito, de comédia romântica, de seriado de domingo, daqueles carinhosos e
fortes, bonitos e sensíveis, que só existem na ficção, e com uma barba que não
era ficção, e que eu queria no meu pescoço, roçando.
Isabel olhava o Eduardo. Insistente. Ele
comeu alguma coisa, falando com a boca cheia (ele tinha essa merda de mania!)
que não tinha comido nada o dia inteiro, tinha ido nuns programas com a banda,
divulgar o CD, tevê, rádio, essas coisas, tudo gente mesquinha, nem um
cafezinho, ele tava com fome, com sono, às vezes queria desistir, tinham que
pagar caro o guitarrista free lancer que tinham posto no lugar do Júlio,
estavam ganhando menos agora, mas ele estava feliz, iam sair em turnê, o Júlio
tinha dado um gás depois de entrar na banda, valia a pena, era um sonho
realizado, sabe?
–Não, respondi. Eu nunca realizei um
sonho.
Ele me olhou mastigando mais devagar, como
se me desse a deixa da cena. Sobem os créditos. E no próximo capítulo... Quis
lhe contar todas as minhas desgraças, como não queria contar à Isabel. Ele
parecia estar me dando espaço, como se adivinhasse a minha vida degradante ou
talvez pelo menos a minha necessidade de dividir algo sério e grande com
alguém. Mas não deu tempo. Os músicos chegaram, abraçaram, deram parabéns, ele
me apresentou, me cumprimentaram, dois me olharam muito e eu gostei muito de
ser muito olhada, que eu estava envelhecendo e isso já não era mais frequente
como antes. E os músicos perguntaram se o Eduardo ia embora com eles, e ele
disse que não, que tinha encontrado duas amigas de infância e que ia ficar mais
ali com elas. E acarinhava Isabel com as unhas roídas dele, que me lembravam
alguma coisa. Isabel dormia com a cabeça virada pra ele, como se o olhasse
insistente, também durante o sono.
–Estou de carro. Levo vocês pra casa, ele
disse depois de os músicos se afastarem.
–Não precisa, falei. Moro no prédio ao
lado.
–Então acompanho vocês até a porta de casa
– e ele sorria.
Dentes brancos por trás da barba preta,
pele morena, muito escura, por baixo da blusa branca. E me lembrei daquela pele
branca, muito clara, por baixo da blusa preta. De quem? E o sorriso do Eduardo,
aberto. Exatamente como o de quem? Eu não sabia. Eu não queria saber. Devia ser
aquela boate, que sempre me lembrava alguma coisa, que estava me lembrando
alguma coisa que não foi, ou que foi, mas não importava. O Eduardo era bonito,
o Eduardo estava ali, o Eduardo, somente o Eduardo importava. Quis aquela barba
cerrada e preta no meu pescoço, roçando, e de repente me ocorreu perguntar:
–Foi esse o pedido que você me fez?
–Hã?
–Sempre quis saber se atendi mesmo algum
pedido que tenham me feito – confessei. Eu tinha vontade de confessar tudo ao
Eduardo, como não tinha vontade de confessar à Isabel. – Eu nunca soube ao
certo se inventei essa história de que todo mundo pode operar milagres ou se,
algum dia, acreditei mesmo nisso. Você pediu a banda? Eu atendi?
Ele olhou os próprios sapatos, um par de
tênis All Star preto com uma faixa vermelha junto à borda branca, o mais comum
dos pares de tênis All Star. Achei que o Eduardo fosse voltar os olhos pra mim
com o cenho franzido da juventude, aquele de raiva, não o de agora, esse de
tristeza, ou eu achava que era. Achei que o Eduardo fosse me mandar à merda,
como na juventude, ou me dizer que eu era uma babaca, que o meu nome devia ser Vítor,
que eu era mais macho que mulher. Achei que o Eduardo fosse levantar a voz –
aquela que cantando era bonita – tão alto quanto ele sabia fazer quando ficava
com raiva de mim – o que era sempre, ou ele fingia assim, e fingia bem – e
fosse me gritar novamente que tudo aquilo era uma babaquice, que eu era uma
idiota, e que ele não tinha feito pedido nenhum. Ele sempre me disse que não
tinha feito pedido nenhum.
Mas em vez disso, ele continuou olhando os
sapatos, raspando a sola de um sobre o branco do outro, deixando sujo o branco
do outro, como se fazer isso pudesse lhe trazer à boca uma resposta melhor do
que a que ele me deu, uma que mantivesse a mentira de juventude de que ele não
tinha feito pedido nenhum. E ele falou, com os olhos baixos falou:
–Não. Não foi a banda que eu pedi não.
E levantou os olhos. E olhou com aqueles
olhos, escuros como os de quem?, bem fundo nos meus olhos. E ele falou, com os
olhos nos meus olhos falou:
–Mas você atendeu. Acho que atende sempre,
Vitória.
Meu nome pesou naquela frase, naquela voz
– bonita a voz dele, bonito ele –, e ele levantou do banco onde se sentava,
acho que confuso, ou talvez triste. Falou baixo com Isabel tentando acordá-la, familiar,
como se vissem todo dia. Senti inveja, mas durou pouco. Que ele falava com ela,
mas olhava pra mim, fundo nos meus olhos claros com os escuros dele. Com
carinho, Eduardo tentava acordar Isabel, as unhas roídas nos cabelos dela,
fazendo carinho. Quis querer saber o que aquilo me lembrava, um sofá velho
xadrez roxo e amarelo, um homem que eu nunca mais vi, tanto tempo atrás. Mas
aquela boate sempre me lembrava alguma coisa. E não importava. Só o Eduardo
importava. Quis querer saber qual tinha sido o pedido que eu tinha realizado. Quis
querer saber o que o Eduardo tinha me pedido um dia, na lancha Queen Victoria
III do pai dele em Paraty. Mas não importava. Só o Eduardo importava.
Talvez eu não tenha pensado assim, que só
ele importava, com tanta certeza ou força senão agora, tantos anos depois.
Naquele momento, naquele dia, naquelas cinco da manhã de uma terça-feira quente
carioca, eu não devo ter pensado assim. Não deu tempo. Isabel não acordou,
Eduardo desistiu de acordar Isabel. E muito rápido ele se voltou pra mim,
certeiro, ensaiado, ação, gravando, cingiu seus braços em redor da minha
cintura, apertado, uniu todo o seu tronco em todo o meu tronco, éramos quase da
mesma altura, pude sentir um sexo duro, forte, alto tocar em mim, e ele me
cravou na boca um beijo longo, me apertando, me abraçando, colocando dentro da
minha boca sua língua gelada com gosto de carne e arroz, um cheiro bom ele
tinha, a nuca suada do show, e então afastou seu rosto do meu e me disse:
desculpe!, com seu corpo colado no meu ainda, quis querer dizer que ele devia
ter me esperado escovar os dentes, riríamos os dois, eu e aquele novo Eduardo
tão diferente do antigo, tão carinhoso e gentil como não era o antigo, mas
bonito como antigamente, com o charme de homem que chega aos quarenta que ele
não tinha antigamente, mas eu não disse nada, dei um sorriso, achei que o meu
destino era mesmo e pra sempre dar pros cantores daquela boate, quis chamá-lo
pro meu apartamento, mas.
Lembrei Isabel, que estava dormindo no meu
único quarto, com a minha única cama, o único colchão, o único pequeno e pífio,
gosto dessa palavra, conforto da minha vida desgraçada. Eu não podia chamar o
Eduardo pro meu apartamento. E fiquei sem palavras, olhando pra ele como a
imbecil de que ele na juventude adorava me chamar. Pensei: quero, eu quero
tanto essa barba no meu pescoço roçando. Foi então que.
O Eduardo se curvou. Beijou meu pescoço.
Aquela barba. Ah. Aquela barba. No meu pescoço. Roçando no meu pescoço. Aquele
corpo. Quente. Me abraçando. Colado no meu corpo. E duro. Forte. Alto. Me
apertando. Me tocando. Enquanto, de olhos virados, eu sentia todo o meu corpo
explodir. Vontade. Eu tinha vontade. De ter o Eduardo. Agora. Já. Sobre mim o
Eduardo eu queria. Mas não podia. E amaldiçoei Isabel. Quis Isabel longe. Quis
nunca mais Isabel perto. Só o Eduardo perto. Como tinha sido com ele. Mas ele
quem? Eu acariciava as costas do Eduardo. Como fiz com as dele. Mas ele quem? E
o Eduardo era alto. Era magro. Era forte. Era bonito. Como ele. Mas ele quem?
Não importava. Quis que não importasse. Que nada mais importasse. Quis querer
cair naquele abraço. Naquele beijo. Naquela barba no meu pescoço. Fechei os
olhos. Abracei o Eduardo. Apertado. Muito apertado. Cada vez mais apertado
contra mim. E esqueci. Isabel. Minha casa mofada. Minha vida miserável. O
emprego perdido. As lembranças que aquela boate trazia. Esqueci. E só lembrei.
Só pensei. Só senti. O Eduardo.
Mas Isabel tinha aberto os olhos. Eu não
sabia. E olhava a mim. E ao Eduardo.
***
Carregada. Ela foi semidesperta e
carregada pela rua, a Isabel. Eduardo nos acompanhou até o prédio ao lado da
boate, aquele onde eu vivia, encerrada na caixa de mofo. Quase tínhamos esquecido
as muletas tortas – como aquelas pernas tortas – apoiadas ao balcão. Elas não
tinham feito a mínima diferença na noite de gala da protagonista Isabel anyway.
A protagonista que voltava bêbada pra casa, carregada pelos coadjuvantes que
enchem linguiça na história com seus enredos insignificantes. A protagonista
que olhava o coadjuvante cantor, que olhava a coadjuvante cômica a vomitar no
chão, que também olhava o coadjuvante cantor. Quem olha a protagonista?,
pensei. Ou só penso agora.
Na porta do prédio, pedi que Eduardo
subisse. Eu tinha muita vergonha da minha casa, mofada e cheia de cupins,
móveis velhos, umidade e paredes crespas – um depósito das minhas inutilidades
apaixonadas, pensei sem dar importância. Porque de fato não importava, nada
mais, só o Eduardo, e eu queria que ele subisse. Eu não me importava de revelar
a ele a minha vida miserável. Eu queria dividir tudo com ele. Cada miséria,
cada mofo, cada cupim, cada cigarro fiado e xícara de café sem açúcar e quase
sem água, meu espelho partido ao meio onde eu via a minha imagem igualmente
partida todos os dias ao acordar. Eu queria dividir com Eduardo todo aquele
mundo cruel onde eu vivia, como não queria mais dividir com Isabel. Eu queria
Isabel longe. Eu queria nunca mais Isabel perto.
Mas era pela Isabel, menti, que eu queria
que ele subisse. Pedi que o Eduardo me ajudasse a levá-la até a cama. Eu não ia
conseguir carregá-la por nove andares, nem mesmo indo no elevador, aquele que
vivia quebrado. (Nove andares! Puta que paralho!, o Eduardo exclamou – um
sorriso aberto como o dele. Ele quem?) A desculpa de carregar Isabel era em
parte verdade. Ela era pesada. Muito. Mas eu queria era mesmo ter o Eduardo
perto mais. E por isso, na porta do prédio, pedi que ele subisse.
E ele subiu.
No elevador, aquele que vivia quebrado, Isabel,
que olhava Eduardo, apagou nos braços do coadjuvante cantor. Agora ele ia ter
que levar no colo a protagonista e deitá-la na cama, cobri-la como nas novelas,
comédias românticas, seriados americanos, a velha cena de amor platônico
mal resolvido. Mas nem o coadjuvante mais forte do mundo conseguiria levantar a
protagonista pesada que era Isabel. Ri desse pensamento. Ele achou que eu ria
pra ele. Riu pra mim o riso aberto, como o dele quem?, e aproveitou o momento
pra me cravar um beijo doce na orelha, ah, aquela barba, estalando no fundo do
tímpano. Gostei.
Deixamos Isabel deitada na cama. O corpo
pesado afundando o colchão mole demais. Olhei pra ela, meu corpo cansado, e
quis estar ali deitada (de preferência junto com o Eduardo). Mais um dia
naquele sofá duro da porra eu ia passar. Raiva. Eduardo pôs o braço sobre os
meus ombros. Carinho bom. Melhor que a raiva. E olhamos em silêncio a
protagonista adormecida, que olhava o coadjuvante cantor, pareceu, mesmo
durante o sono. Os olhos de Isabel, cerrados, voltados pra ele, pro Eduardo,
que agora voltava os olhos abertos, escuros como os de quem?, pra mim.
Virei pra ele. Ficamos novamente frente a
frente. Novamente, ele me apertava, corpo contra corpo. Tive vontade de pedir
tighter, please, e ele me beijou novamente, duramente, longamente. Quis com
ainda mais força estar sobre aquela cama, o Eduardo sobre mim, a barba do
Eduardo sobre o meu pescoço, roçando, e pela primeira vez, primeirúltima who
knows?, formulei o que por tantos anos eu havia evitado (sim, evitado, porque,
só agora me ocorre, eu sempre havia pensado assim): te odeio, Isabel. E com um
quê de pedido, de súplica, de oração, mentalizei entoando Never come near me
again. Do you really think I need you?
Pensei: quem sabe o sofá? Eu queria tanto
o Eduardo. E a Isabel estava num sono tão profundo que nem se daria conta! Mas
eu estava com medo. De quê? Do desfecho, talvez, só agora penso, que eu talvez
pressentisse sem certezas. Mas eu não sabia. Ainda não sabia que tinha sido um
pedido, feito de mim pra mim, aquele verso entoado de Space Dye-Vest. Eu ainda
não sabia mesmo nada, do porvir eu nunca tinha sabido nada (só esperado, o que
foi ruim, porque o esperado nunca chegou). Naquele momento, acompanhando o
Eduardo até a porta, eu só sabia do medo. Nem sabia do que, só do medo.
***
–Quero ver o Júlio.
Eduardo me beijava.
–Te levo.
Eduardo me beijava.
–Quero ver você.
Eduardo me beijava.
–Me chama. Eu venho.
Eduardo me beijava.
***
Quando ele foi embora e fechei a porta na
minha frente, a tampa da caixa de mofo sobre mim, fui até a janela e olhei
abaixo o abismo de nove andares. Uns cansativos minutos depois, Eduardo
apareceu lá embaixo, olhou pra cima, talvez na esperança de me ver, mas acho
que não me viu. Ou que sorriu pra mim. Amanhecia. Ele entrou num Siena vermelho
parado junto ao meio-fio. E sumiu.
Quis que ele voltasse. Isso foi um pedido.
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