sexta-feira, 13 de setembro de 2013

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Explodindo a aquarela da consciência - Texto de Emmanuel Santiago




 


Livro: Gume de Gueixa
Autor: Jandira Zanchi

Gênero: Poesia

Número de Páginas: 100

Formato: 15x20

Preço: R$ 30,00 + frete (livro em pré-venda)






Explodindo a aquarela da consciência

Emmanuel Santiago

Como é bastante sabido entre os conhecedores de poesia, Rimbaud, numa carta a Paul Demeny, sugeriu que o poeta deveria se tornar uma espécie de vidente por meio de um “longo, imenso e ponderado desregramento de todos os sentidos”. Descontando as evidentes conotações místicas do termo vidente (uma variante da concepção romântica do poeta vate), podemos dizer que Rimbaud pensava numa poesia do futuro, projetiva — o poeta como “antena da raça”, para citar a formulação de Ezra Pound, que os conhecedores, mais uma vez, hão de reconhecer. Abrindo-se para toda sorte de novas experiências, vivendo intensamente, colhendo com os sentidos muito de tudo (“todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura”), o poeta esgota os caminhos previamente traçados, o campo mapeado do possível, até tocar, com a ponta dos dedos, o véu do desconhecido e descortinar o futuro. Aonde quer que a humanidade chegue um dia, o poeta já esteve e agora traz os ecos de uma terra distante e obscura. Como bem disse o mestre Caeiro:

Sou o descobridor da Natureza.
Sou o Argonauta das sensações verdadeiras.
Trago ao Universo um novo Universo
Porque trago ao Universo ele próprio.[1]

O país estranho do qual o poeta nos fala é, afinal de contas, o nosso próprio, apenas limpo da patina gordurosa da rotina, da mesmice, dos clichês. Contudo, não é preciso, como Rimbaud pretendia, impor ao poeta um modo de vida. Não, caros leitores, não é preciso que o poeta se entregue ao ópio, ao absinto, à cocaína; não é preciso que experimente o sexo grupal, o sexo com cadáveres, com cavalos; que seja amarrado, pendurado, furado, costurado ou quem sabe penteado por serafins; nem mesmo é preciso que leve à boca qualquer imundície. Alguns poetas, imagino eu, nunca choraram sozinhos num banheiro sujo. Não sei se é o caso de Jandira Zanchi, a quem conheço somente das veredas do mundo virtual. Ocorre que, como seus versos demonstram, a poesia não é o produto de um desregramento prévio; ela é o próprio caminho, o processo pelo qual nossos sentidos alucinam e passamos a enxergar as coisas sob uma nova luz e por inusitadas perspectivas. Vejamos em “A cor do rio”:

Decapitava a noite
seu frio mármore
estremecido de gozo

Se me permitem uma rápida tentativa de exegese, talvez querendo inserir, imprópria e inadvertidamente, uma mísera moeda de sentido na solda perfeita entre som e imagem[2], o “frio mármore estremecido de gozo” é o rio com suas águas trêmulas, como parece sugerir o nome do poema. Ou talvez seja a noite a decapitar-se a si mesma. O que sei eu? O fato é que o poema, operando fora das figuras de linguagem ratificadas pela tradição e apostando na ambiguidade e na indefinição sintática, força-nos a olhar para as coisas mais corriqueiras com os olhos prenhes de estranheza. Aprendemos a desaprender as coisas, com as pupilas dilatadas de perplexidade: “Não-entender, não-entender, até se virar menino”, na lição de Guimarães Rosa.

Contudo, alguns poemas de Zanchi se fecham no mais intransigente hermetismo, forçando-nos a abdicar de qualquer anseio interpretativo, como em “Umbigo”:

fumava fumaças
de charutos rútilos
desejava desvios
de prantos e pratas
nádegas de defuntos

esquálido e vibrante
essa face nódoa
amante do umbigo

fertilizadora de silêncios.

A corrosão do sentido do poema tem como consequência um desmantelamento do discurso, de modo que, não raro, nexos sintáticos são preteridos em favor da livre associação de ideias ou palavras, abolindo-se a pontuação. Em “Favorita”:

luz e dia sombra alta
a terra arde e ama
o Sol de seu príncipe
segue-se um terço
e partes.

Obviamente, estamos diante de uma autora que se coloca em linha de continuidade com as experimentações surrealistas que, desde certa vertente da poesia de Manuel Bandeira, possui forte tradição no Brasil: Murilo Mendes, Jorge de Lima, os integrantes da Geração de 45 etc. Entretanto, o que tais poetas não compartilham com Jandira  Zanchi é a dissolução da forma e do discurso, que faz a sintaxe desesperar. Segundo as palavras da própria poetisa: “testemunho — sem comover-me —/ a mutação da forma e sua desarmonia/ alegria exuberância tirania de vida” (“Testemunho”). Mais correto, portanto, é filiá-la ao nonsense caboclo de Manoel de Barros, à poesia xamânica de Roberto Piva e, para apostar numa referência externa, ao surrealismo (des)construtivista do português Herberto Hélder.

Mas é com Piva que Zanchi comunga um importante aspecto de sua poesia: o erotismo. Não um erotismo de uma carne que se faz verbo; não um erotismo que se depreende de um corpo imaginado através das palavras, emerso ao nível do significado, plenamente representado. Na realidade, o que temos aqui é uma sedução pela palavra (num sentido em tudo diverso ao que tal expressão tem recebido ultimamente na selva selvagem dos simpatizantes da literatura comercial), pois, as palavras, trabalhadas em sua dimensão material, no âmbito do significante, propiciam por si mesmas uma experiência que captura a sensibilidade e instiga a imaginação. É o verbo que se faz carne, mas, neste caso, uma carne embebida no gozo e destituída de culpa:

quero a ímpia e colorida terra
outra vez nua nos orgasmos
de seus rios e mares
amada sede de seres e sonhos. (grifos meus)

A poesia transfigura a natureza, a realidade, tornando-a objeto de uma fruição sensualíssima, no entanto, além disso, há a própria sonoridade da estrofe, seu ritmo, seus ecos, suas aliterações, fazendo dos versos uma experiência inebriante, embalada no soçobro do sentido:

Novilha na Rede...
antes que te voltes, Mulher,
a mão do bárbaro é novamente tua
beija-lhe em cada uma das três faces
o olho do centro
o amálgama do medo esquecido
em suas poeiras vagas vagabundas
de ilusões e cortejos
nua e na rua redime a forma e sua
discutível planificação de outras redes. (grifos meus)

As sugestões eróticas do enunciado se fundem à volúpia das palavras na enunciação, formando uma camada espessa de impressões sensoriais. O gozo não está somente no que se entrevê nas frestas das palavras, no que se adivinha por detrás delas (pois o detrás, algumas vezes, não existe); ele está também nas palavras elas mesmas, em seu arranjo, no que contenham de sonoridade. Pleno gozo do signo: sedução pelo significado e, sobretudo, pelo significante.

Nesse sentido — o de uma poesia que, muitas vezes, despoja-se de qualquer lastro referencial para melhor imprimir seu poder de sugestão — temos uma obra poética que não se quer limitada pelas regras da verossimilhança ou pelas amarras do possível. Ela não se pretende verdadeira, tampouco mente, pois seus critérios são outros. A voz lírica diz: “conheço o luxo de ser nua e insofismável” (“Gume de gueixa”) e assim é a poesia de Zanchi — despida de qualquer pretensão de apreender conceitualmente a realidade, de emitir juízos e definições, ela se apresenta em sua beleza pura, em seu esteticismo intoxicante, como a nos dizer: com a beleza não se discute. A gueixa, cujo gume dá título ao livro, remete-nos à hetaira Friné diante do Aéropago, absolvida de acusações caluniosas única e exclusivamente por força de sua estonteante (e, por que não dizer, “insofismável”?) nudez.


Emmanuel Santiago,  poeta e crítico literário, é doutorando em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), mesma instituição na qual concluiu seu Mestrado em Teoria Literária e Literatura Comparada. É ainda Bacharel em Estudos Literários pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e autor do livro A narração dificultosa: “Cara-de-Bronze”, de João Guimarães Rosa, a ser lançado brevemente pela EDUSP.




[1] PESSOA, Fernando. “O guardador de rebanhos - XLVI”. In: Poesia completa de Alberto Caeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 73.
[2] Walter Benjamin comenta a respeito dos primórdios do surrealismo: “A vida só parecia digna de ser vivida quando se dissolvia a fronteira entre o sono e a vigília, permitindo a passagem em massa de figuras ondulantes, e a linguagem só parecia autêntica quando o som e a imagem, a imagem e o som, se interpenetravam, com exatidão automática, de forma tão feliz que não sobrava a mínima fresta para inserir a pequena moeda a que chamamos ‘sentido’”. BENJAMIN, Walter. “O surrealismo: o último instantâneo da inteligência europeia”. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. 7ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 22.

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