sexta-feira, 20 de setembro de 2013

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Síndrome da heteronímia (doenças fantásticas), Rui Tinoco


Primeiro caso conhecido

A síndrome surgiu pela primeira vez no início do século XX num paciente chamado Fernando Pessoa. Se bem que a situação tenha passado quase despercebida na época, a gravidade e variedade dos sintomas são bem ilustrativos da forma como a doença evolui. O paciente julgou ser várias pessoas, inventando-lhes biografias específicas, dramatizando formas de ser junto de amigos. Os poemas de Pessoa tinham temáticas e ritmos diversos conforme a personagem incarnada no momento. Deu-se o caso até de um dos desdobramentos do eu assumir o papel de médico, o que testemunha a gravidade da patologia. Supõe-se que se trataria a si próprio em momentos de maior desorganização.

Sintomas

Este primeiro caso é paradigmático do desvario que a doença desencadeia. O alcoolismo ou o abuso de outras substâncias pode também estar presente. Os comportamentos adictivos são aliás uma das co-morbilidades mais frequentes. Nas situações graves, os doentes pensam ser outras pessoas, evidenciando registos mnésicos separados. É como se se estivesse perante vários eus que se acumulam no mesmo corpo. Há registo de pessoas que parecem não ter consciência do que fazem quando estão noutro eu. Denomina-se esta linha sintomática de complexo de separação dos eus e é diagnosticado sempre que o paciente funcione de forma dissociativa, sem qualquer forma de ligação entre os diversos eus emergentes.

Os casos de egosdistonia testemunham um agravamento da separação dos eus. Regista-se, para além da ausência de relacionamento entre os diversos eus, uma extensa conflituosidade. Os eus como que se digladiam e entram numa discussão que desembocará, em determinadas circunstâncias, na auto-mutilação. Vários serviços de urgência das grandes cidades detectaram casos de pessoas que parecem infligir, deliberadamente, ferimentos em si mesmos. Apresentam-se revoltadas e mantêm acesos monólogos em que se exaltam e perdem o controle.

História

O advento da internet forneceu um suporte tecnológico a estes doentes. Pela primeira vez, desde que há memória na história dos homens, passou a existir um apoio informático a quem quisesse ser diversas personagens. Na net inventa-se um boneco que é vestido como se quiser. A qualquer momento é possível mudá-lo completamente, inclusive de sexo. O cada vez mais generalizado acesso aos computadores e aos mundos virtuais tornou esta doença muito frequente.

Testemunham-se movimentos contraditórios: os doentes são agora mais numerosos mas, em muitos casos, os sintomas não são tão graves. Queremos dizer que o computador, ao mesmo tempo que multiplica os casos de infecção, parece fazer diminuir a sua gravidade. O que se afirma não impediu de, recentemente, os registos clínicos dirigirem-se numa estranha direcção: vários doentes apresentam queixas em relação aos outros eus. Protestam contra a sua independência e rebeldia.

É um curioso fenómeno histórico que faz suspeitar que a síndrome da heteronímia não é uma patologia homogénea, mas procede de diversas causas, apresentando múltiplas configurações. Muitos pacientes parecem acalmar-se com o computador, com as personagens que inventam em diversos suportes informáticos e até na internet. Noutras situações, os sintomas agravam-se e há como que uma fragmentação completa da consciência. Os doentes iniciam discussões com o seu próprio avatar, insurgindo-se com violência contra determinadas posições que alegadamente assumiriam.

A evolução desta linha sintomática é particularmente danosa. Observa-se com frequência a diluição dos níveis de realidade, julgando a pessoa ter poderes de avatar no mundo real e crendo ser ela própria quando imersa numa aplicação informática. Este tipo de sintomatologia pode pôr em causa a integridade física dos pacientes, pois um avatar salta de prédio para prédio e até voa em determinadas aplicações, o mesmo não acontecendo no mundo material. Nas últimas semanas, a taxa de morbilidade entre os pacientes com estes sintomas foi altíssima o que levou a considerá-la um problema de saúde pública.

Tratamento

Felizmente, o Instituto de Doenças Virtuais veio pôr um termo a estes dúbios comportamentos. Utilizando os mais avançados programas informáticos, identifica os portadores da síndrome e consegue destruir toda a veleidade de pensamento em qualquer avatar mais recalcitrante. Deste modo, o utilizador do mundo real, perdoe-se a expressão, ficará definitivamente a salvo de qualquer surpresa intelectual.

A tele-realidade é um meio extremamente estimulante e poderoso. No entanto, a convivência prolongada com avatares mal preparados desencadeia consequências bastante nefastas. Os avatares ficam confinados a um severo recolhimento. São proibidos das mais pequenas distracções: não podem voar, nem teclar com ninguém. Encontram-se também despojados de qualquer poder, pois são incapazes de mover objectos ou de modificar a aparência.
Em casos mais severos, optou-se por trazer os humanos que os controlavam para entre nós. Tratava-se de gente em que a miséria e o descontrole se encontravam bem patentes. As pessoas não saíam dos seus quartos há meses, não comiam e estavam bastante magras. De acordo com os relatórios médicos, que os acompanhavam, pouco mais sobreviveriam não fosse a atempada intervenção do instituto: digitalizámo-los e corrigimos prontamente as suas silhuetas.
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(publicado inicialmente na revista de poesia Piolho)
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