Primeiro caso conhecido
A síndrome surgiu pela primeira vez no início do século XX
num paciente chamado Fernando Pessoa. Se bem que a situação tenha passado quase
despercebida na época, a gravidade e variedade dos sintomas são bem ilustrativos
da forma como a doença evolui. O paciente julgou ser várias pessoas,
inventando-lhes biografias específicas, dramatizando formas de ser junto de
amigos. Os poemas de Pessoa tinham temáticas e ritmos diversos conforme a
personagem incarnada no momento. Deu-se o caso até de um dos desdobramentos do
eu assumir o papel de médico, o que testemunha a gravidade da patologia. Supõe-se
que se trataria a si próprio em momentos de maior desorganização.
Sintomas
Este primeiro caso é paradigmático do desvario que a doença desencadeia.
O alcoolismo ou o abuso de outras substâncias pode também estar presente. Os
comportamentos adictivos são aliás uma das co-morbilidades mais frequentes. Nas
situações graves, os doentes pensam ser outras pessoas, evidenciando registos
mnésicos separados. É como se se estivesse perante vários eus que se acumulam
no mesmo corpo. Há registo de pessoas que parecem não ter consciência do que
fazem quando estão noutro eu. Denomina-se esta linha sintomática de complexo de
separação dos eus e é diagnosticado sempre que o paciente funcione de forma
dissociativa, sem qualquer forma de ligação entre os diversos eus emergentes.
Os casos de egosdistonia testemunham um agravamento da
separação dos eus. Regista-se, para além da ausência de relacionamento entre os
diversos eus, uma extensa conflituosidade. Os eus como que se digladiam e
entram numa discussão que desembocará, em determinadas circunstâncias, na
auto-mutilação. Vários serviços de urgência das grandes cidades detectaram
casos de pessoas que parecem infligir, deliberadamente, ferimentos em si
mesmos. Apresentam-se revoltadas e mantêm acesos monólogos em que se exaltam e
perdem o controle.
História
O advento da internet forneceu um suporte tecnológico a estes
doentes. Pela primeira vez, desde que há memória na história dos homens, passou
a existir um apoio informático a quem quisesse ser diversas personagens. Na net
inventa-se um boneco que é vestido como se quiser. A qualquer momento é
possível mudá-lo completamente, inclusive de sexo. O cada vez mais generalizado
acesso aos computadores e aos mundos virtuais tornou esta doença muito
frequente.
Testemunham-se movimentos contraditórios: os doentes são
agora mais numerosos mas, em muitos casos, os sintomas não são tão graves.
Queremos dizer que o computador, ao mesmo tempo que multiplica os casos de
infecção, parece fazer diminuir a sua gravidade. O que se afirma não impediu
de, recentemente, os registos clínicos dirigirem-se numa estranha direcção:
vários doentes apresentam queixas em relação aos outros eus. Protestam contra a
sua independência e rebeldia.
É um curioso fenómeno histórico que faz suspeitar que a
síndrome da heteronímia não é uma patologia homogénea, mas procede de diversas
causas, apresentando múltiplas configurações. Muitos pacientes parecem
acalmar-se com o computador, com as personagens que inventam em diversos
suportes informáticos e até na internet. Noutras situações, os sintomas
agravam-se e há como que uma fragmentação completa da consciência. Os doentes
iniciam discussões com o seu próprio avatar, insurgindo-se com violência contra
determinadas posições que alegadamente assumiriam.
A evolução desta linha sintomática é particularmente danosa.
Observa-se com frequência a diluição dos níveis de realidade, julgando a pessoa
ter poderes de avatar no mundo real e crendo ser ela própria quando imersa numa
aplicação informática. Este tipo de sintomatologia pode pôr em causa a
integridade física dos pacientes, pois um avatar salta de prédio para prédio e
até voa em determinadas aplicações, o mesmo não acontecendo no mundo material.
Nas últimas semanas, a taxa de morbilidade entre os pacientes com estes
sintomas foi altíssima o que levou a considerá-la um problema de saúde pública.
Tratamento
Felizmente, o Instituto de Doenças Virtuais veio pôr um termo
a estes dúbios comportamentos. Utilizando os mais avançados programas
informáticos, identifica os portadores da síndrome e consegue destruir toda a
veleidade de pensamento em qualquer avatar mais recalcitrante. Deste modo, o
utilizador do mundo real, perdoe-se a expressão, ficará definitivamente a salvo
de qualquer surpresa intelectual.
A tele-realidade é um meio extremamente estimulante e
poderoso. No entanto, a convivência prolongada com avatares mal preparados
desencadeia consequências bastante nefastas. Os avatares ficam confinados a um
severo recolhimento. São proibidos das mais pequenas distracções: não podem
voar, nem teclar com ninguém. Encontram-se também despojados de qualquer poder,
pois são incapazes de mover objectos ou de modificar a aparência.
Em
casos mais severos, optou-se por trazer os humanos que os controlavam para
entre nós. Tratava-se de gente em que a miséria e o descontrole se encontravam
bem patentes. As pessoas não saíam dos seus quartos há meses, não comiam e
estavam bastante magras. De acordo com os relatórios médicos, que os
acompanhavam, pouco mais sobreviveriam não fosse a atempada intervenção do
instituto: digitalizámo-los e corrigimos prontamente as suas silhuetas.*
(publicado inicialmente na revista de poesia Piolho)
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