Ontem apenas
Ontem apenas alterei o número do cabeçalho e nada escrevi. E não quero
escrever sobre falta de inspiração. Isso já deu muita manga para vários autores
escreverem, não quero ser mais um, apesar de que já escrevi sobre esse tema
que, para mim, já a muito batido.
Também não quero escrever sobre o tempo, esse verão de frio e chuva e
garoa que só atrapalha e impede os movimentos. Moro num país tropical, se
gostasse de frio iria morar na Groenlândia, se é que lá é frio.
Também não quero escrever sobre o fretado. Gozado, depois que passei a
usar o fretado nunca mais escrevi sobre ele. E muito menos com o que ocorre
durante a viagem. Viagem! Não deixa de ser uma viagem, de casa aqui levo
aproximadamente uma hora. Mas não quero falar sobre ele, apesar de que hoje
passou cedo, vamos dizer no horário, e chegou aqui na Paulista antes das oito.
Também não quero escrever sobre me policiar, pois já escrevi duas vezes
nesse texto a expressão: “apesar de que”, e um texto com palavras repetidas
torna-se um texto pobre, fajuto, demonstra a pouca capacidade criativa do
escritor.
Também não quero escrever sobre a reforma do calçamento da Avenida
Paulista e o transtorno que está causando. É reforma para melhorar, logo
espero, esse transtorno acabara.
Também não quero escrever sobre a espera longa que se tem para pegar o
elevador, e nem sobre o pessoal, uns com a coleira a mão outros já com a
coleira parecendo que tem um peso enorme pendurado no pescoço, não quero
escrever sobre isso, não.
Também não quero escrever sobre a ansiedade em cumprimentar os
aniversariantes. Parece uma paranoia obsessiva que, se não cumprimentar será
entendido como se não gostasse da pessoa. Para mim, se me cumprimentarem ou não
me cumprimentarem não faz diferença nenhuma, não vou ficar magoado ou chateado,
não me sentirei nem mais gordo e nem mais magro.
Também não quero escrever sobre o desaparecimento do fone de ouvido que
estava em cima da mesa, onde o deixo todos os dias. Não que seja algo
importante, mas se sumiu uma porcaria de fone de ouvido, futuramente poderá
sumir algo mais valioso. E também, não estou culpando ninguém pelo seu sumiço,
pois pode ser que ele tenha caído num dos cantos da mesa, ou enroscado em algum
monte de papéis, quem sabe!
Também não quero escrever sobre o que faço, sobre o meu serviço ingrato
e chato. Se faço esse serviço, perfurar papéis o dia todo é por que não me
esforcei para ter uma função melhor, portanto nada de me lamentar.
Também não vou escrever sobre o aprisionamento necessário, o qual sou forçado
há oito horas por dia para me manter sobrevivente dessa massa invisível chamada
de humano.
Também não quero escrever sobre as dores nas costas. A dificuldade que
às vezes tenho ao me levantar de manhã. A dificuldade em erguer as caixas,
coisa que o médico me proibiu. Talvez, será preciso uma operação, não sei
ainda. E também, o medo de perder o convênio e enfrentar as filhas enormes dos SUS
da vida.
Também não quero escrever sobre os amigos reais que são poucos e fiéis,
pois como dizia a filosofa minha mãe: antes pouco do que muito. E nessa
filosofia barata de beira de fogão, fui criado humildemente. Talvez, por isso
não almejo vida melhor, o pouco que tenho me basta, não tenho pretensão em ser
rico, pois sempre me julguei rico.
Também não quero escrever sobre os amigos virtuais. Os amigos que desde um
mil novecentos e noventa e oito compartilho ideias, ensinamentos poéticos. Desde
a Sociedade dos Poetas Urbanos, passando pelo Mar de Poesia, depois Fórum de
Poesia, Escritas, Blinda Alvorada, Amantes das Leituras, Anjos de Prata – onde
publico meus textos: www.anjosdeprata.com.br -, Ateneu, Amantes
da Poesia, Rascunhos Poéticos, aos sábados na Casa das Rosas, onde conheci
poetas formidáveis e sei que vou conhecer muitos outros, tanto ou quanto
formidáveis aos que já conheço, e o blog: Poetas Lusófonos: http://www.poetas-lusofonos.blogspot.com,
onde depois de anos, os poetas amigos voltam a se encontrarem.
Também não quero escrever sobre a fome. Verme faminto que nunca está
saciado. Verme que alimenta a máquina política a engordar em época de eleições.
Não, não falarei dela, a fome, solitária corroendo estômagos perdidos nas
marquises da cidade, engabelados pelo craque de sonhos não realizados.
Também não quero escrever sobre o vicio. O vicio mórbido que todos um
dia deveriam experimentar isto porque, toda experiência é válida, consumista
estampando noticias na mídia em geral. Viva o vicio sincero elevando a
intelectualidade de nosso ser a cada dia vivido.
Também não quero escrever sobre o amor, o amor que engole que domina machista
ou feminista, o amor solitário refugiando nos copos vazios de alma a procura de
companhia. O amor triste pisando poças iluminadas pela lua da madrugada depois
da chuva. O amor não alcançado em noites de caça por bares e boates e saunas de
desiludidos da vida.
Também não quero escrever...
Espere. Disse a imagem refletida no espelho a sua frente.
Sim. Disse ele, o que foi?
Porra! Você escreveu que não quer escrever sobre uma infinidade de
coisas.
Sim!
Reparou que nesse não dizer, você disse o que não queria dizer?
Ele olhou seu reflexo.
Vá à merda!
Salvou o texto. Clicou em enviar. Fechou o Word. Pensou: mais um texto
para o editorial da revista. Fechou o note book. Encarou seu eu no reflexo do
espelho. Tomou uma decisão. Jogou o note book no espelho. Reluziram estilhaços
de vidros por todos os lados do seu sentimento. Depois sentou na poltrona e se
serviu de uma boa dose de uísque e adormeceu sossegado.
No dia seguinte, os vizinhos presenciaram a ambulância levando-o para a
última viagem.
pastorelli
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