NÃO TE IMPORTES COM O QUE FICOU
não te importes com o que ficou
na mesa. a disposição dos pratos
sujos, a chávena com restos
de chá: tudo isso foi a forma
que o passado assumiu num
determinado lugar como um
deus helénico que, por fatalidade
ou brincadeira, se deixou manipular
pelo destino e ficou ao lado dos homens
comuns. eu depois limpo tudo:
afastarei as migalhas, deitarei o chá
frio pelo ralo do esquecimento.
as palavras vivem próximas umas
das outras e deixam de ecoar.
ficámos sentados no sofá da sala,
a mesa como um deus helénico
na sua forma peculiar de figurar
o passado, na sua inesperada
solidariedade com os homens.
entreolhámo-nos. também se
torna necessário não dizer nada 9
procurar a sílaba que «devia
estar mesmo aqui» e encontrar
mesmo aí um gemido
e depois mais outro.
*
(In: Era Uma Vez o Branco, Nazaré, Volta d'Mar Edições, 2013).
1 Comentário
Belo poema, Rui. Parabéns pelo livro! Abraço
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