segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

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Não te importes com o que ficou , Rui Tinoco






NÃO TE IMPORTES COM O QUE FICOU

não te importes com o que ficou

na mesa. a disposição dos pratos

sujos, a chávena com restos

de chá: tudo isso foi a forma

que o passado assumiu num

determinado lugar como um

deus helénico que, por fatalidade

ou brincadeira, se deixou manipular

pelo destino e ficou ao lado dos homens

comuns. eu depois limpo tudo:

afastarei as migalhas, deitarei o chá

frio pelo ralo do esquecimento.

as palavras vivem próximas umas

das outras e deixam de ecoar.

ficámos sentados no sofá da sala,

a mesa como um deus helénico

na sua forma peculiar de figurar

o passado, na sua inesperada

solidariedade com os homens.

entreolhámo-nos. também se

torna necessário não dizer nada
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procurar a sílaba que «devia

estar mesmo aqui» e encontrar

mesmo aí um gemido

e depois mais outro.

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(In: Era Uma Vez o Branco, Nazaré, Volta d'Mar Edições, 2013).

1 Comentário

Pablo Flora

Belo poema, Rui. Parabéns pelo livro! Abraço