Estamos de mudança para uma
pequena cidade do interior, eu, meu pai, minha mãe e meus dois filhos, de onze
e nove anos. Depois de vários anos morando sozinho, distante de meus entes
queridos, com os quais me encontro apenas nos finais de semana – desde quando
decidi tomar em definitivo as rédeas de minha vida –, me sinto empolgado e
feliz com a perspectiva de voltar a viver em família.
A cidade para onde estamos nos
mudando deve ter por volta de quinze mil habitantes e vamos morar num casarão em
estilo colonial que ocupa todo um quarteirão. O casarão é do final do século
XIX, com o pé direito alto, cômodos amplos e assim também são as aberturas das
janelas e das portas. As vigas e os pilares da estrutura, os batentes das
portas e janelas e os móveis são de madeira maciça, em cores escuras, sóbrias,
mas tudo muito limpo, organizado e conservado. Lá é possível respirar um ar
úmido e puro, pois o casarão ocupa o centro do terreno sendo rodeado de muito
verde: árvores centenárias, jardins e um pomar.
A pequena cidade representa uma
novidade para todos nós e estamos ansiosos por conhecê-la e aos seus moradores.
Entretanto, precisamos tomar providências quanto a um conflito inicial:
trouxemos conosco nossos animais de estimação, dois cães e um gato, que sempre
viveram em harmonia; mas no casarão já havia um cão de guarda. Este é bastante
hostil e não aceita a convivência com os nossos bichos. Tentamos várias
configurações, deixando inclusive os dois cães maiores segregados do cachorro
menor e do gato. Mas o cão de guarda, apesar de inicialmente aceitar esse
último arranjo, acabou atacando ferozmente o nosso cachorro maior; por sorte
separamos a briga, sem maiores implicações. Decidimos doar o cão de guarda, o
que não foi muito difícil. E assim foi restabelecida a harmonia.
Saímos para um passeio.
Caminhamos pela praça principal e observamos a formação do que seria uma
procissão. Próximo à praça havia um pequeno museu e, como estávamos
interessados em conhecer mais da história e dos moradores daquela cidade,
decidimo-nos por uma visita.
Estávamos apenas eu, meu pai e
minha mãe. As crianças não nos acompanharam ao museu, era desinteressante para
eles. Enquanto eu observava um aparador com fotos em branco e preto de famílias
tradicionais daquela cidade e respectivas anotações, senti um súbito mal estar,
com ligeira queda da pressão e meus pés se umedeceram.
Retirei os meus sapatos, minhas
meias estavam empapadas de sangue. Saquei as meias e, para a minha surpresa, no
entorno das plantas de meus pés havia profundas fissuras na pele que iam até os
ossos, por onde vazavam sangue e linfa. Era como se as carnes tivessem perdido
elasticidade e resistência, descolando dos ossos pela simples pressão exercida
do corpo sobre os meus pés.
Quando fui me levantar, empurrando
o corpo para cima com o meu braço direito, sulcos se formaram pela contração do
músculo, donde agora fluíam também grande quantidade de plasma e sangue, e uma
das extremidades de meu tríceps se rompeu como uma corda apodrecida. A sensação
era aquela de um corpo composto por ossos revestidos de argila: bastava um
movimento mais brusco para que imensas fissuras se abrissem, deixando vazar as
entranhas.
Permaneci deitado no chão do
museu, de forma a distribuir mais uniformemente o peso de meu corpo, para que
nenhuma nova ferida se abrisse. Eu perdia muito sangue e linfa, minha mãe ficou
comigo enquanto meu pai foi buscar socorro. Entretanto, uma longa procissão
passava pela rua de acesso ao museu e por isso a ambulância custava a chegar.
Eu podia ver a procissão passando lentamente através de ampla janela de vidro.
Quando a procissão terminou sua
passagem, a ambulância chegou. Já havia um ferido no interior do veículo,
aparentemente um rapaz com a perna fraturada. Os enfermeiros que me puseram na ambulância
pareciam perturbados pelo odor putrefato que exalava de meu corpo. Pelo
semblante deles fiz a leitura de que a situação era grave.
No hospital local os médicos não
sabiam como tratar de minha enfermidade. Fui então de ambulância para um hospital
de outra cidade, maior e mais bem equipado. Os médicos, melhor capacitados,
diagnosticaram uma grave deficiência associada à eliminação de toxinas e
impurezas pelo organismo, estas teriam se acumulado em excesso nos músculos e
nas diversas camadas da pele, causando o seu colapso ou quase falência.
Fui colocado numa espécie de
banheira hospitalar, onde eu permanecia praticamente imerso numa emulsão de ph
neutro, deitado, apenas com a cabeça para fora. O objetivo era a cicatrização
das fissuras, que ainda vazavam plasma e sangue, e a redução do risco da
abertura de novos ferimentos pelo impacto ou esforço físico.
Eu havia perdido muito sangue e
estava fraco. Implorei para o meu pai e minha mãe que não me deixassem sozinho
no hospital. Os médicos recomendaram que eu bebesse muita água e que ingerisse
tanto quanto possível os medicamentos que haviam deixado. Para o meu
estranhamento, estes consistiam de minerais, de cristais translúcidos e
lapidados, alguns nas cores vermelha ou amarela, a maioria transparente;
semelhantes às pedras preciosas. Outros desses medicamentos ou alimentos eram
segmentos metálicos, como aqueles de estanho ou prata, num formato similar ao
chocolate granulado. Eu botava pequenos punhados desses cristais na boca e os
ingeria com amplos goles d’água. Fazia o mesmo com os segmentos metálicos.
Apesar disso, fui enfraquecendo
gradualmente. Meu corpo estava frágil e delgado. O meu pai, sempre ao lado da
banheira-leito durante essa minha convalescença. Eu já não conseguia falar,
alternava estados de vigília, sono e torpor. Não diferenciava os dias das
noites e estava incapacitado de percepção acurada da passagem do tempo. Certo
dia, enquanto estava desperto, o meu pai me disse:
– Desculpe-me filho, mas terei de deixá-lo. A
vida segue, não posso permanecer para sempre ao teu lado.
Por essa época eu não sentia mais
dor e, estranhamente, percebia o gradual aumento de minhas faculdades
cognitivas e de percepção inversamente à degradação de meu estado físico. Era
possível compreender as conversas dos médicos ao meu redor, que davam como
certo o meu fim iminente.
Certo dia, eu recebi a visita de
meu primo militar. Apesar de meu estado catatônico, ele falou normalmente
comigo, não ficou apenas me fitando com aquele semblante de pena, como faziam
os demais. Ele me disse que todos estavam bem, apesar de que fazendo
concessões; estavam economizando e trabalhando duro para custear o meu
tratamento, que eu ficasse tranquilo, que todos torciam para que eu me
recuperasse e mandavam lembranças.
Nunca me senti tão mal como
naquele dia. De súbito percebi como eu havia sido estúpido e egoísta em haver
pedido que meu pai e minha mãe não me abandonassem. Agora todos de minha
família estavam passando por necessidades para me manterem no hospital. E eu não
conseguia sequer me mover, me comunicar, pedir que me deixassem em paz, que eu
não sentia mais dor; enfim, que eu estava preparado para partir.
Os médicos se reuniam de vez em
quando ao meu redor para a discussão de meu quadro clínico que, pelo que eu podia
ouvir, era estável. Apesar disso, esse estado, na opinião deles, era
irreversível.
– Como pode a família desse sujeito mantê-lo
nesse quadro, alimentarem ainda a esperança de que ele pode se recuperar?
– Enquanto isso ele ocupa mais um leito desse
hospital, com tantos pacientes promissores precisando de quartos para o seu
pronto restabelecimento.
– É verdade, tremenda insensatez!
Certa noite eu ouvi o médico
plantonista conversando com um policial que havia entrado no quarto. Combinaram
alguma coisa em voz baixa, o médico permaneceu no quarto e o policial foi para
fora. Nessa noite, em particular, o hospital estava abarrotado de gente,
faltavam leitos para os atendimentos de urgência. Pacientes agonizavam no
corredor e eu podia ouvi-los.
Então, o plantonista agarrou o
meu corpo frágil que, naquele momento, apesar de um metro e oitenta e cinco
centímetros de altura, pesava menos de cinquenta quilos. Minha pele fina se
rasgou em vários pontos, donde esguichava muita linfa e sangue. Eu não passava
de um saco preenchido de material orgânico podre e ossos. O médico simulou um
enfrentamento, como se eu o tivesse atacado e jogou meu corpo para fora do
quarto, no meio do corredor, próximo a escadaria. Daí o policial sacou sua
arma, mirou bem e disparou.
O primeiro tiro atravessou o meu
antebraço direito facilmente, como se perfurasse um saco plástico preenchido
por água. Eu não sentia dor. Os pacientes e outros médicos gritavam de terror.
O segundo tiro, o policial acertou bem no meio de minha têmpora esquerda. Boa
pontaria, pensei comigo mesmo. Meu corpo tombou desfalecido no chão. O sangue
escorria em direção aos degraus.
Ao contrário do que imaginava, eu
não perdi a consciência após ter sido alvejado, meus sentidos se expandiam
ainda mais. Tentei identificar donde vinha aquele fluxo consciente que era eu
mesmo. Para o meu espanto, meus sentidos estavam imiscuídos ao sangue que
escorria andar abaixo pelos degraus. Eu era aquele líquido vermelho putrefato
que se espalhava, podia sentir a perda de calor para os degraus gelados de
granito. A que ponto lamentável eu cheguei, que condição absurda, pensei com os
meus botões. Apesar disso, a sensação era genuína e extremamente sui generis.
Procurei desfrutar ao máximo daquela percepção ou consciência sanguínea. Até
que, súbito, cessou a experiência e caí num sono profundo.
* * *
Quando despertei estava deitado
na sala de estar de uma casa na periferia doutra cidade. A temperatura era
agradável. Olhando pela janela, podia ver a exuberância do céu de cor púrpura.
Ao fundo faiscavam relâmpagos em intervalos breves, porém assíncronos. Não
havia, porém, o barulho de trovões.
– Ah, você finalmente despertou!
Disse uma garota de vinte e
poucos anos. Logo se juntaram a ela outra garota e um rapaz aparentando mesma
idade.
– Então é você o cara que escorreu pelas
escadas.
A frase do rapaz não era
carregada de ironia ou sarcasmo, mas de grande amabilidade. Senti-me
envergonhado e constrangido. O meu corpo encontrava-se frágil e debilitado como
naqueles últimos dias no hospital, apesar disso, consegui responder.
– Sim, sou eu.
– Fique tranquilo, disse a outra garota, todos
nós aqui passamos mais ou menos pela mesma coisa. A gente vai cuidar de você
até que se sinta melhor.
Eles estavam sempre por ali, na
ampla sala de estar. Percebi que havia outras duas pessoas se recuperando ali,
a exemplo de quem vos narra essa história. Cada uma dessas pessoas era
especialmente assistida por um deles. O rapaz é quem era o responsável pelos
meus cuidados.
Com o passar dos dias melhorava o
meu quadro clínico, apesar de não recordar de qualquer medicação. Eu ganhava
peso e ânimo na mesma medida em que se expandia a minha consciência. Percebi
como aquela cidade era evoluída e afortunada, provavelmente com alto índice de
desenvolvimento humano. A casa onde eu estava ficava na periferia, como já
mencionei; apesar disso, não se comparava às condições precárias às quais estamos
acostumados de experimentar. Por sua vez, o centro da cidade não era caótico,
barulhento ou agitado. Ao contrário, parecia emanar daquela fonte grande
energia vital e harmonia, que eu podia captar através de meus sentidos. Parecia
ser este o alimento que propiciava o meu restabelecimento.
Não devo me furtar em narrar que
me sentia como criatura assombrada com tantas novidades num curto período de
tempo. Certa noite, eu vi um corredor através do qual as garotas e o rapaz se
recolheram. Eu já podia me movimentar com dificuldades, meio que rastejando, e rumei
para lá. Chegando próximo ao batente, percebi que não havia porta, mas sim uma
parede menos espessa. Apenas uma pequena abertura próxima ao solo em forma de
arco. Eu podia enxergar através daquela abertura, mas não havia como eu passar.
Vi, então, o rapaz se aproximando
pelo corredor. Ele vinha em minha direção. Para o meu espanto ele atravessou
através da parede interior ao batente.
– Você ainda não está pronto para estar
conosco. Logo estará mais forte, vai ficar bom.
Eu me sentia só. Um dia percebi
que havia três pessoas vindas do centro da cidade para a periferia com o
intuito de se encontrarem comigo. Pude captar também a apreensão no rosto das
duas garotas e do rapaz que zelavam por mim. Quando estavam bastante próximos
eles pararam e começaram a discutir entre si. Debatiam se era a atitude
acertada. Pude então identificá-los. Era minha ex-mulher e os seus pais. Depois
de uma conversa entre si, eles se afastaram e foram embora.
Senti-me entristecido.
– Não se preocupe; mais breve do
que imagina estará junto de sua verdadeira família.
Disse-me uma das garotas com
grande convicção.
E foi essa sua fala que me trouxe
extrema paz de espírito.
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