Duña,
o veneradíssimo ser, honorável guardião da sapiência cósmica, toma a palavra e
disserta vagamente sobre a Páscoa e seus cacaus, em depoimento exclusivo a Neca
Versante.
"Vivi
a ilusão do coelhinho até os meus 26 anos, quando me foi revelada, por um amigo
vendedor de raspadinhas, a verdade nua e crua. Custei a crer que o peludinho de
olhos vermelhos não era, nem nunca fora, entregador de ovos.
Como foi
duro ver ruir o que me parecia, até então, um dogma indiscutível. Lembro-me
como se fosse hoje do peso de sua mão direita no meu ombro, me consolando do
baque, enquanto a esquerda, sem que percebesse, me batia a carteira a céu
aberto e em plena praça. Não saberia dizer quem era mais FDP – o maldito
vendedor de raspadinhas ou o farsante coelhinho das Lojas Americanas.
Caí em
depressão profunda e me enfurnei no deserto de Atacama para um período sabático
de reflexão e prece. Ao invés de encontrar os eixos, os entortei de vez. Como
que numa espécie de efeito dominó, outras arraigadas crenças, fundadoras da
minha personalidade e mais tarde da minha seita, passaram a ser alvo de
incômoda desconfiança. E coloquei em xeque a existência de outros ídolos, como
o boitatá, os elementais das minas, os anjos da guarda e o obeso mórbido que
por essas plagas chamam de Papai Noel.
Mas era o
mamífero orelhudo a desilusão da vez. Esmurrava o peito e dava fortes cacetadas
na cabeça, me autoflagelando por ter sido tão crédulo, deixando-me enganar por
tanto tempo. Pus-me a recordar a Páscoa do ano anterior ao da revelação
fatídica. Cursava MBA a milhares de quilômetros de distância, mas isso
não era empecilho para desfrutar dos folguedos pascais junto a papai, mamãe e
titia Verena. A passagem era cara, o ônibus judiado, o sujeito da poltrona ao
lado tinha sérios problemas de regorgitamento e foram oito longas horas de
infortúnio até a casa paterna. A tudo isso relevava, com a perspectiva do
coelho e seus doces ovos, acalentando a sonhada possibilidade de flagrá-lo
enquanto escondia seus tesouros deste marmanjo duñesco.
Findo o
período sabático, equivalente a 214 programas do Raul Gil incluindo os
intervalos comerciais, sacudi a areia grudada no traseiro e parti de Atacama
com o firme propósito de iniciar meu apostolado em Sertãozinho. Não era fácil
encarar serenamente tão ambiciosa empreitada. Os milhões de seguidores que
tenho hoje reduziam-se na época a nenhum, e o golpe sofrido com o desencanto do
coelho ainda não cicatrizara por completo. Mas ergui a cabeça e segui em
frente. O resto é história, já fartamente documentada nas mais de três mil
biografias sobre minha pessoa e meu projeto missionário".
©
Direitos
Reservados
Marcelo Pirajá Sguassábia é
redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e
eletrônicas.
Blog:
Email: msguassabia@yahoo.com.br
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