quinta-feira, 19 de junho de 2014

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O velho inventariador



É a melodia triste a se apossar dum remoinho para transmudar na ideia. O velho, cansado, procura nos bolsos de suas calças surradas as chaves da humilde residência. Abre a porta pesada, com vagar. Dá com as costas da mão canhota no interruptor. Então ele já pode ver.

O bom e velho som Philips, 3 em 1, companheiro noturno das últimas quatro décadas. O aparelho receptor de t.v. Telefunken, com tubo catódico. Uma mesa: dois cavaletes com duas longas pranchas de construção dispostas horizontalmente acima. Quatro cadeiras, consistindo estas de duas caixas de pêssegos e mais duas caixas de peras argentinas, doutro tempo, daquele das caixas de frutas de madeira, das peras e dos pêssegos argentinos, todas elas apoiadas no chão sobre as respectivas faces de menor área. Lembranças férteis. Lembranças do esterco, não dos agrotóxicos, não dos transgênicos. Lembranças da Terra molhada.

Na janela da sala é possível, pela observação cuidadosa, aperceber-se da sinuosidade do vidro, que é a tergiversação de sua própria função. Não, não são apenas os operários que se exaurem da jornada longa de trabalho e, vez por outra, desviam o foco do eterno produzir, que é como pensa o patrão. Até o vidro se derrete. Outra vez ele trinca. Então não há culpa.

Noutro cômodo, o quarto de dormir. Um colchão acomodado sobre caixas abertas, daquelas de supermercado, lâminas de papelão sobre o piso frio. Um travesseiro com fronha, um lençol e um cobertor comprados no Mappin, sobre o colchão. A procedência do colchão lhe foge a memória. Um criado-mudo de mogno. “De mogno”, ele repete, em voz alta (apesar de estar só). A definição da madeira lhe atribui uma identidade, como se sacasse esse móvel em específico do conjunto quase inumerável de todos os criados-mudos do universo. Tal e qual o verdadeiro conhecedor da aguardente entende antes do madeiramento para avaliar-lhe, depois, o sabor. O velho sabe.

Uma miríade de azulejos delimita as superfícies fronteiriças do banheiro. O espelho retangular em formato 20,3 x 25,4 cm disposto acima da pia, onde o velho se espelha qual fotografia desbotada. Uma ruga, duas rugas, outra ruga. Cada vinco de sua face leva um nome e tem história. Ele pode nominá-los como aos trópicos, como aos polos ou a outros importantes meridianos. Como as crateras da Lua, aquelas da sua face. “As above, so below.” O rosto envelhecido, sua geografia mais íntima.

No canto, o pequeno box do chuveiro, com queda para o ralo. Estupefato, o velho fita lá, bem no canto, naquela quina do nada, o verde louva-a-deus. E ele ora. Noooossa!

Nem toda a vida dedicada aos inventários de terceiros. Nada disso. Disso ele herdou tão somente o direito ao dia seguinte. Nada disso. Numa curva suave do hemisfério direito de seu cérebro. É lá onde se encontra o maior dos tesouros, todos os seus sonhos, a memória, registros remotos de sua ancestralidade. O velho sorri.

Nesta noite ele desiste do banho. Deita-se sobre o colchão. Fecha o corpo sob o cobertor como se bate a porta. Daí a ideia a transmudar-se através dum remoinho para a melodia doce duma vida. Escorrer por toda a 373rn1d4d3.





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