terça-feira, 24 de junho de 2014

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RESENHA CRÍTICA DO LIVRO "OS LAÇOS DA FITA", ESCRITA PELO ESCRITOR ALLAN REGIS

Ora, quais são as experiências que um autor busca para construir uma obra que discute as dificuldades de se viver como gente, de continuar existindo diante de toda a sua opressão, sendo vencido por suas fraquezas, fazendo uso de remédios contra indicados para amenizar toda a dor e sofrimento em que são expostos? Como se consegue revelar a solidão, a carência, as angústias e como se arrota ou se põe para fora os descasos, as tristezas e abalos familiares que desconstroem lares e criam sujeitos deprimidos, loucos, homicidas, jogados em becos sem saídas, consumindo toda a sorte de drogas? Talvez, os primeiros estalos vieram depois de leituras clássicas que descreveram agruras já em tempos remotos; comprova-se isto em várias escolas que criaram seus discípulos afiados. Mas, não vamos aqui trabalhar com especulações acerca da formação da letra do escritor aguçado que deixou transparecer o que está intrínseco em almas sensíveis. Se eu quisesse arriscar mesmo, diria que as bases de tudo costumam estar, sobretudo, presentes na experiência direta com a realidade ou indireta, quando se é parte do contingente ou quando se é observador do ritmo de vida dos oprimidos. O que circula nas mídias de forma geral, tentando noticiar o que anda acontecendo com os marginalizados, ou como ele próprio perambula ao vivo por sarjetas que lhe oferecem como saída, para quem quiser ser testemunha ocular, pode ser uma fonte de ideias para um escritor de senso crítico apurado como demonstra ser Fernando Rocha.
“Os laços da fita” é uma novela que, se não apresenta pessoas tentando escapar da Peste Negra, como em Decamerão, apresenta, então, pessoas tentando escapar de várias outras “pestes” tão perigosas quanto. Mazelas destrutíveis. Não é objetivo aqui traçar paralelos com a obra de Boccaccio, nem tão pouco afirmar influências – o que seria inoportuno e poderia conduzir ao improvável -, mas, é importante dizer que o cariz realístico das obras – cada autor a sua maneira dentro de um mesmo gênero, é claro, com descrições de circunstâncias diferentes, tendo o intuito de revelar a decadência social -, talvez, se assemelha no que diz respeito aos opróbrios do ser humano, bem como os conflitos tão comuns deste, suas condutas e reações nem sempre politicamente corretas diante de imposições advindas de superiores que ditam as regras da sociedade e acabam beneficiando uns poucos em detrimentos de outros muitos. Sem falar sobre a afirmação indireta de que massacres podem ser sim ideológicos, e o que alguém poderoso pensa como certo pode vir como uma bomba sobre aquele que não tem força argumentativa para ir contra tal pensamento que se infiltra na ingenuidade e se revela preconceituoso e alienante. Tais pensamentos só servem para animalizar o mais fraco quando nega a ele a possibilidade de viver com dignidade.
Focando a obra de Fernando Rocha, que interessa mais falar por agora, principalmente, apresenta os dramas de personagens que se arrebentam fragilizados pelo peso do descaso, do abandono, do desprezo, das facadas que levam em troca de um rarefeito e sujo fôlego de vida. Com os psicológicos afetados, estão num espaço periférico procurando vagas entre outros seres, procurando entender e dar sentidos a coisas incompreensíveis e insensíveis. Estão deslocados no mundo, são peças que não se encaixam no modelo de quebra cabeça que impuseram a eles. Estão carentes de amor, carinho, compreensão, nadando contra as águas de córregos poluídos. Querem dar cabo de si mesmos. Querem saltar de um navio que o afunda para tentar ir para alguma outra terra onde as relações sejam menos brutas, menos injustas, menos cruéis. São órfãos, são pais, são mães, são avós jazendo num martírio. Arrebentam fácil como um apodrecido varal que não sustenta, não suporta a quantidade de roupas pregadas sobre si, que o envergam, enquanto balança para lá e para cá sem firmeza e forças suficientes para suportar a carga, além de tudo, os frientos vendavais que agride avassaladoramente. O autor discorreu de forma elegante, mesmo soltando lindos e ao mesmo tempo repugnantes, mas comuns, palavrões cabeludos que contribui para identificar quem são os personagens de sua novela. A obra tem um visgo formado por confluências de linguagens. Está nítido. Lembro-me de ter conhecido algo assim, quando li a obra “EXTINÇÃO” do austríaco Thomas Bernhard, o que – principalmente no conto “DESPEDIDA” (página 13 de “Os laços da fita”), temos uma bela “ressuscitação” de Murau – personagem da obra de Bernhard – que também caminha para a autodestruição a medida que “ecoa as vozes que abomina” e usa-nos como confidente fiel. A sintaxe sincroniza os dizeres. O informal e o formal se respeitam e se unem para embelezar o enredo e dar características próprias à novela. Porém, é óbvio, não há como falar sobre a obra sem imergir nos argumentos e tentar compreender o que leva alguém para o fundo do poço – ou melhor: o que o empurra para o fundo, que aqui representa a sarjeta e a cova rasa. É preciso estar atento à voz sofrível dos personagens. Dar ouvidos e aprofundar-se em reflexões. Os personagens de Fernando Rocha estão num divã, e você os escuta e anota, só diz alguma coisa quando for pertinente. Eles suspiram quando não gritam. Se arrastam e fendem nossos corações enquanto regurgitam. Desabafam e procuram se escorar no leitor, tentando achar neste, alguém que compreenda longe do que acham os insensíveis e julgadores. Os oprimidos falam, desembucham, revelam-se em busca de soluções antes daquelas que eles mesmos já parecem ter encontrado. O fim que muitos acreditam ser, para eles são recomeços e alternativas apenas que se apresentam como únicas. O álcool, as drogas, oferecem o pseudo refúgio, que acabam alarmando o entorno, o que rodeia aqueles que o consome e trazendo também seus prejuízos por tabela. Na verdade: consomem por tabela! E o vazio cresce ajudado por feridas mal cicatrizadas e chagas tão profundas quantas as de Cristo. E elas vão circulando dentro do seio da própria família que carrega sua cruz dede o período escravocrata, desde as mais remotas crises e abominações, sem apoio, essa infeliz herança – da qual ela não consegue desvencilhar-se – a destrói sem dó nem piedade. A família, sem nutrientes, confinada, não se suporta, não suporta a si e nem aos outros, acaba perdendo-se em si mesma e acaba dando fim ao outro que, por sua vez, não conseguiu ter um seio para regenerar-se, por isso morre afogado sem atingir qualquer mão estendida que venha de um barco em naufrágio ou à deriva. Então, para se salvarem agarram-se, única e exclusivamente, em soluções que lhe oferecem o mal travestido de bem. Se apegam às “armas e balas”, aos “laços”, que prometem salvá-los de uma vida que não lhe recebeu de braços abertos e que não lhe deu honra e força suficiente para atestar as estimativas de se vivê-la. Diante da precariedade em que vive o ser humano, herança colonial – diriam muitos -, Fernando transporta para as páginas de “Os Laços da Fita” o cenário comum nas periferias, comum na San Peterburgo de Dostoiévsky, nos “Contos de Amor, de Loucura e De Morte” tão bem escritos por Horacio Quiroga, ou em “Suicídios Exemplares” de Enrique Vila-Matas. As mesmas vozes aparecem, são das mesmas gentes, mesmas comunidades de pessoas, almas que flutuam, pessoas que tentam encontrar motivos para se viver em favelas, em becos e vielas, tentando achar paz no vaivem, procurando os seus, solitários, em busca do carinho de seus entes e trocando um afago por qualquer coisa. Gritos sobrevêm das classes menos favorecidas, dos contribuintes que sustentam e ao mesmo tempo esmolam nos departamentos públicos, e tentam transgredir o estilo de vida que o sistema oferece. São homens, mulheres, jovens e adultos. São pais, avós, pessoas, enfim, que lutam para destruir uma vida difícil nas quais nasceram ou foram jogadas. Desvencilhar-se de lembranças dos que deram cabo de suas vidas, mas que ainda insistem em assombrar os que ficaram ruminando histórias passadas, porém não ultrapassadas, e que martelam, martelam, e ferem o tempo todo almas carentes, tristonhas, miseráveis, angustiadas e, sobretudo, mortas-vivas. De qualquer maneira, junto com elas – como o personagem do texto “DESPEDIDA”, presente na página 10 da obra – estamos todos em contagem regressiva, pedindo ajuda, pedindo compreensão, pedindo amor e carinho, atenção, pedindo apoio, em busca de solução para os vazios, em luta por um motivo para continuar existindo num mundo opressor, dentro de um sistema desregulado, administrado pelo egoísmo frio de alguns que faz gemer debaixo das marquises a maioria do povo. Longe de mim querer bater o martelo e achar outras soluções para aquelas já apresentadas dentro da obra que acabam servindo como tapas na cara de nossa sociedade, revelando o que aflige as famílias periféricas. E se a “fita” com seus “laços” formados pelas linhas do verbo viver – o que cria um paradoxo dilacerante e conflitante – é um símbolo da catástrofe ou última solução ou maneira de partir vingando-se, de alguma maneira, de quem fica órfão, herdando duras incógnitas, não sei, ou, talvez, uma maneira nefasta de dizer adeus ao que nunca recebeu como seu, sei lá. O certo é que a “fita” e seus laços merecem, com certeza, serem vistos como uma brilhante metáfora, ou um enigma que pune ao ser decifrado. Depois de tudo, ainda surgem nascimentos na mesma sarjeta, na tentativa de ser diferente do passado, correndo-se o risco dos erros voltarem. Novos rebentos órfãos chegam herdando um passado nebuloso que ainda vão se da conta. O dar a luz vai mostrando novas esperanças, dando novas chances, oportunidades, como um “vá e não peque mais” ou uma aposta que os pessimistas dirão ser improváveis de se ganhar. O texto “O Parto”, presente na página 79, mostra bem isso. Traz o sentimento infantil do novo, do renascimento tanto da angústia quanto de novas histórias que podem ser reescritas e readaptadas ou reproduzidas se não tiver fim a maldita herança histórica. Porém, se o grito dos oprimidos continuarem sendo abafados como há séculos, resta o quê? Uma bala na cabeça ou uma corda para se enforcar! Ou, então, qualquer outra solução que serviu aos personagens de “Os laços da fita”. “Relaxa! É só um lance que eu pensei agora” – disse um personagem de Fernando Roxa ao perguntar o custo de uma arma ao tio. Enfim, o que trago aqui são somente alguns outros questionamentos que – direta e indiretamente Fernando Rocha já deixou em sua obra, não são novos não, plagiam o autor crítico e sensível em busca das mesmas respostas que poucos ousam dar para as agruras que fazem sofrer os oprimidos que gritam à procura de redenção, antes de amarrarem seus pescoços para poderem dar seus últimos suspiros nos bem arquitetados laços da fita”
18 de junho de 2014

1 Comentário

Anônimo

Parabens pelo livro, tocante todo o enredo! Mal consigo me conter para começar a ler esta obra.