quarta-feira, 25 de junho de 2014

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A NOITE

Vista por fora, a noite é silêncio, mansidão de quietudes, a que reagimos sensivelmente ao perceber que não há o vazio em sua sombra. Vista por dentro, o silêncio da noite não é calmaria, é voz que se ouve como grito do mundo. O sentimento de espera paira na noite que se revela como sombra e nos rodeia em vultos escuros que incitam pensamentos perdidos em labirintos. Como em Carmen S. Presotto, “...que eu passe, / que todos passem / e onde todos passarão / parto dias / estrelo a noite / rabisco outra luz”.
Basta olhar a noite como se fosse um quadro que transcende ao curso empírico da vida, onde o destino passeia entre as sombras dos olhos e, quando se torna longa, nela vagamos em pensamentos impressos na retina. Nas palavras de Jaime Vaz Brasil, “Noite a noite / o mundo desbota. //. Lavrado em sombra / decreta-se / o naufrágio da luz: // um tombo // no litígio das cores”.
Não conseguimos impedir de nos entregar à noite, pois ela transmite simbolismo e atende aos nossos desejos, quando contemplamos o instante da imagem no anoitecer, onde o sol no infinito ensaia a dança das cores ao som do Bolero de Ravel, extraída do saxofone e nas sombras da geografia do improviso: “Os olhos oficiam a imagem”, no momento em que a sensação visual se transforma em ato de expressão; como dizem, “os poetas podem ver na escuridão”, em recorrente metáfora na elaboração de um vocabulário luminoso que preza o momento de ligação entre o homem e a natureza.
Podemos dizer que a noite desnuda a solidão sem disfarces e, sem reflexos, quebra o conflito do silêncio. A natureza demonstra a solidão do homem cortejando o destino, o que circunscreve à paisagem. Jaime Vaz Brasil pergunta, “... Onde a noite / esconde o mote / que teus olhos se destapa?”
A noite desaba seus movimentos abraçando as horas onde o escuro esconde a sensação do medo em cada som. Ela rompe o tempo com magia e oculta o reflexo na sombra das palavras, que os escritores iluminam. Como demonstra Pedro Du Bois, no livro A Mão Que Escreve, e Carlos Higgie, com o conto Escura Noite, no livro Caleidoscópio.
Embora não tenha nada sistemático, a noite ensaia sua sombra, encobre seus passos onde nossa memória visual é perceptível e ao se instalar grita pela história: a inquietude do homem faz a noite transformar vidas. Lembro Jorge Luis Borges, “Não restará na noite uma estrela. / Não restará a noite. / Morrerei, e comigo a soma / do intolerável universo...”

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