Essas letras,
ordenadas de forma meticulosa ao longo de cinco breves páginas, são uma
homenagem ao meu querido irmão Érico Teixeira Neto. Ele saberá porque...
O texto consiste
numa coleção de onze excertos cuidadosamente selecionados de O Lobo da Estepe. Este
romance foi publicado originalmente no ano de 1927 sob o título Der Steppenwolf
pelo escritor suíço de naturalidade alemã Hermann Hesse. O escritor, por sua
vez, recebeu o Nobel de Literatura em 1946 e tem entre as suas obras notáveis: Das
Glasperlenspiel (O Jogo das Contas de Vidro), Demian, Der Steppenwolf (O Lobo
da Estepe) e Siddhartha.
Posso elencar os
três livros de Hermann Hesse que li, segundo a minha preferência, na seguinte
ordem: Demian, O Lobo da Estepe e Siddhartha. Espero que eu tenha, em breve, a
oportunidade de apreciar também O Jogo das Contas de Vidro.
E a Você, prestes
a navegar através dessas onze passagens, eu desejo, de antemão, uma boa viagem!
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O burguês, como
um estado sempre presente da vida humana, não é outra coisa senão a tentativa
de uma transigência, a tentativa de um equilibrado meio-termo entre os
inumeráveis extremos e pares opostos da conduta humana. Tomemos, por exemplo,
qualquer dessas dualidades, como o santo e o libertino, e nossa comparação se
esclarecerá em seguida. O homem tem a possibilidade de entregar-se por completo
ao espiritual, à tentativa de aproximar-se de Deus, ao ideal de santidade.
Também tem, por outro lado, a possibilidade de entregar-se inteiramente à vida
dos instintos, aos anseios da carne, e dirigir seus esforços no sentido de
satisfazer seus prazeres momentâneos. Um dos caminhos conduz à santidade, ao martírio
do espírito, à entrega a Deus. O outro caminho conduz à libertinagem, ao
martírio da carne, à entrega, à corrupção. O burguês tentará caminhar entre
ambos, no meio do caminho. Nunca se entregará nem se abandonará à embriaguez ou
ao asceticismo; nunca será mártir nem consentirá em sua destruição, mas, ao
contrário, seu ideal não é a entrega, mas a conservação de seu eu, seu esforço
não significa nem santidade nem libertinagem, o absoluto lhe é insuportável,
quer certamente servir a Deus, mas também entregar-se ao êxtase, quer ser virtuoso,
mas quer igualmente passar bem e viver comodamente sobre a terra. Em resumo, tente
plantar-se em meio aos dois extremos, numa zona temperada e vantajosa, sem
grandes tempestades ou borrascas, e o consegue ainda que à custa daquela
intensidade de vida e de sentimentos que uma existência extremada e sem reservas
permite. Viver intensamente só se consegue à custa do eu. Mas o burguês não
aprecia nada tanto quanto o seu eu (um eu na verdade rudimentarmente
desenvolvido). À custa da intensidade consegue, pois, a subsistência e a
segurança; em lugar da posse de Deus cultiva a tranqüilidade da consciência; em
lugar do prazer, a satisfação; em lugar da liberdade, a comodidade; em lugar
dos ardores mortais, uma temperatura agradável. O burguês é, pois, segundo sua
natureza, uma criatura de impulsos vitais muito débeis e angustiosos, temerosa
de qualquer entrega de si mesma, fácil de governar. Por isso colocou em lugar
do poder a maioria, em lugar da autoridade a lei, em lugar da responsabilidade
as eleições.
É compreensível
que esta débil e angustiada criatura, embora existindo em número tão grande,
não consiga manter-se, que, de acordo com suas particularidades, não possa representar
outro papel no mundo senão o de rebanho de cordeiros entre lobos erradios. Contudo,
vemos que, em tempos de governos fortes, os burgueses se vêem oprimidos contra
a parede, mas nunca sucumbem; na verdade às vezes parecem mesmo dominar o
mundo. Como será possível? Nem o numeroso rebanho, nem a virtude, nem o senso
comum, nem a organização serão suficientes para salvá-lo da destruição. Não há
remédio no mundo que possa sustentar uma intensidade tão débil em sua origem.
E, todavia, a burguesia vive, é forte e próspera. Por quê?
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Não devemos
surpreender-nos pelo fato de que mesmo um homem tão inteligente e educado
quanto Harry possa tomar-se por um lobo da estepe e reduzir a rica e complexa
imagem de sua vida a uma fórmula tão simples, tão rudimentar e primitiva. O
homem não é capaz de pensar em alta escala, e mesmo o mais espiritual e
altamente intelectualizado pode contemplar o mundo e a si próprio através das
lentes de fórmulas enganosas e simplistas — especialmente a si próprio! Pois
parece ser uma necessidade inata e imperativa de todos os homens imaginarem o
próprio ser como unidade. E apesar de essa ilusão sofrer com freqüência graves
contratempos e terríveis choques, ela sempre se recompõe. O juiz que se senta
defronte ao criminoso e o fita no rosto, e por um instante reconhece todas as
emoções, potencialidades e possibilidades do assassino em sua própria alma de
juiz e ouve a voz do assassino como sendo a sua, já no momento seguinte volta a
ser uno e indivisível como juiz, volta a encerrar-se na envoltura do seu eu
quimérico e cumpre seu dever e condena o assassino à morte. E se em algumas
almas humanas, singularmente dotadas e de percepção sensível, se levanta a suspeita
de sua composição múltipla, e, como ocorre aos gênios, rompem a ilusão da
unidade personalística e percebem que o ser se compõe de uma pluralidade de
seres como um feixe de eus, e chegam a exprimir essa idéia, então imediatamente
a maioria as prende, chama a ciência em seu auxílio, diagnostica esquizofrenia
e protege a Humanidade para que não ouça um grito de verdade dos lábios desses
infelizes. Então, para que perder aqui palavras, por que expressar coisas que
todos aqueles que pensam conhecem por si mesmos, quando sua simples enunciação
é uma nota de mau gosto? Assim, pois, se um homem se aventura a converter numa
dualidade a pretendida unidade do eu, se não é um gênio, é em todo caso uma
rara e interessante exceção. Mas na realidade não há nenhum eu, nem mesmo no
mais simples, não há uma unidade, mas um mundo plural, um pequeno firmamento,
um caos de formas, de matizes, de situações, de heranças e possibilidades. Cada
indivíduo isolado vive sujeito a considerar esse caos como uma unidade e fala
de seu eu como se fora um ente simples, bem formado, claramente definido; e a
todos os homens, mesmo aos mais eminentes, esse rude engano parece uma
necessidade, uma exigência da vida, como o respirar e o comer.
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Nosso mundo
cultural era um cemitério, ali estavam Jesus Cristo e Sócrates, ali estavam
Mozart e Haydn, Dante e Goethe; não passavam de nomes meio apagados numa placa
de metal enferrujada, rodeada de assistentes falsos e hipócritas, que dariam tudo
para continuar acreditando nas placas de metal, em outros tempos sagradas para
eles; que dariam tudo para dizer ao menos umas honestas e sérias palavras de
tristeza e desesperança sobre o mundo desaparecido, mas só sabiam em vez disso
rodear o túmulo, gesticulantes e forçados. Acabei cortando o queixo no lugar de
costume; gastei uns minutos para estancar o sangue, e tive de trocar o
colarinho, sem saber por que fazia tudo aquilo, pois não sentia o menor prazer
em atender àquele convite. Mas uma parte de Harry estava representando de novo
uma comédia, dizendo que o professor era uma pessoa simpática; suspirava por um
pouco de aroma de humanidade, de sociedade e de palestra; lembrou-se da bela
mulher do professor, achou no fundo muito alentadora a idéia de passar a noite
na casa daqueles amáveis anfitriões, e me ajudou a pregar no queixo um
pedacinho de esparadrapo; ajudou-me a vestir e dar o nó à gravata decente, e me
impediu com jeito de seguir meu verdadeiro impulso de permanecer em casa. Ao
mesmo tempo, pensava comigo: “Assim como agora me visto e saio, vou visitar o
professor e troco com ele algumas frases amáveis, mais ou menos falsas, tudo
isto contra a minha vontade, assim procede a maioria dos homens que vivem e
negociam todos os dias, todas as horas, forçadamente e sem na realidade
querê-lo; fazem visitas, mantêm conversações, sentam-se durante horas inteiras
em seus escritórios e fábricas, tudo à força, mecanicamente, sem vontade; tudo poderia
ser realizado com a mesma perfeição por máquinas ou não se realizar; e essa
mecânica eternamente continuada é o que lhes impede, assim como a mim, de
exercer a crítica de sua própria vida, reconhecer e sentir sua estupidez e
superficialidade, sua desesperada tristeza e solidão. E têm razão, muitíssima
razão, os homens que assim vivem, que se divertem com seus brinquedinhos, que
correm atrás de seus assuntos, em vez de se oporem à mecânica aflitiva e
olharem desesperados o vazio, como faço eu, homem marginalizado que sou. Se às
vezes desprezo e até me burlo dos homens nestas páginas, não será por isto que
os culpe de minha indigência pessoal! Mas eu, que cheguei tão longe e estou à
margem da vida, de onde se tomba à escuridão sem fundo, cometo uma injustiça e
minto, se pretendo enganar-me e enganar os outros, como se funcionasse também
para mim aquela mecânica, como se continuasse a pertencer àquele mundo nobre e
infantil do eterno jogo!”
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Não — disse —
não me aborrece, já estou acostumado. Venho manifestando já por vezes minha
opinião de que cada povo e até cada indivíduo, em vez de sonhar com falsas
"responsabilidades" políticas, devia refletir a fundo sobre a parte
de culpa que lhe cabe da guerra e de outras misérias humanas, quer por sua
atuação, por sua omissão ou por seus maus costumes; este seria provavelmente o
único meio de se evitar a próxima guerra. E por isso, não me perdoam, pois se
julgam todos, sem dúvida, inocentes: o Kaiser, os generais, os grandes
industriais, os políticos, os jornalistas... nenhum deles tem absolutamente
nada de que recriminar-se, ninguém tem culpa alguma! Poder-se-ia até pensar que
tudo foi melhor assim para o mundo, embora alguns milhões de mortos estejam
embaixo da terra.
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Sua vida não
será monótona nem estúpida, embora saiba que sua luta é inútil. É muito mais
lisonjeiro, Harry, lutar-se por alguma coisa bela e ideal e saber ao mesmo
tempo que não se conseguirá alcançá-la. Os ideais serão algo que se possa
alcançar? Viveremos para acabar com a morte? Não, vivemos para temê-la e também
para amá-la, e precisamente por causa da morte é que nossa vida vez por outra
resplandece tão radiosa num breve instante.
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Aquelas imagens
— eram centenas, com e sem nome — estavam ali de novo, surgiam novas e jovens
do poço daquela noite de amor, e tornei a ter consciência do que havia
esquecido na miséria, que elas eram o tesouro e os bens da minha vida e que
continuavam existindo inalteráveis, acontecimentos culminantes que poderia
esquecer, mas não destruir, cuja série formava a lenda de minha vida, cujo
brilho era o indestrutível valor de minha existência. Minha vida fora penosa,
transtornada e infeliz, conduzindo à destruição e ao niilismo, fora amargurada
pelo sal de todo destino humano, mas havia sido rica, orgulhosa e senhorial;
uma vida soberba até mesmo na miséria. E ainda que o resto do caminho até o
ocaso fosse inteiramente desfigurado, o cerne desta vida fora nobre, tinha
feição e estirpe, não girara em torno das moedas, mas em torno das estrelas.
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Você trazia no
íntimo uma imagem da vida, uma fé, uma exigência; estava disposto a feitos, a
sofrimentos e sacrifícios, e logo aos poucos notou que o mundo não lhe pedia nenhuma
ação, nenhum sacrifício nem algo semelhante; que a vida não é nenhum poema épico,
com rasgos de heróis e coisas parecidas, mas um salão burguês, no qual se vive inteiramente
feliz com a comida e a bebida, o café e o tricô, o jogo de cartas e a música de
rádio. E quem aspira a outra coisa e traz em si o heróico e o belo, a veneração
pelos grandes poetas ou a veneração pelos santos, não passa de um louco ou de
um Quixote.
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De um nicho na
parede, tomou três copos e uma graciosa garrafinha, apanhou uma exótica caixa
de madeira escura, encheu os copos com o licor da garrafa, tomou da caixa três
finos cigarros, longos e amarelos; tirou do bolso de sua jaqueta de seda um
isqueiro e acendeu nossos cigarros. Fumamos todos, atirando o corpo para trás
sobre o respaldo de nossas cadeiras, fumamos lentamente o cigarro, cujo fumo
era espesso como o do incenso, e bebemos um pequeno sorvo do líquido agridoce,
desconhecido e estranho, cujo efeito logo nos reanimou, como se estivéssemos
cheios de gás e tivéssemos perdido a gravidade.
Assim sentados,
fumamos em pequenas tragadas, descansamos, libando lentamente a bebida, e nos
sentimos mais leves e alegres.
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A noção de dever
me é inteiramente desconhecida. Antes, em decorrência de minha profissão, tinha
muito a ver com ela; era professor de Teologia. Além disso, fui soldado e tomei
parte na guerra. O que me parecia o dever e o que as autoridades e as leis me
haviam ordenado não era realmente bom, e de boa vontade teria feito exatamente
o contrário. Mas embora admita que o conceito do dever não mais me atinja,
conheço contudo o conceito da culpa; talvez sejam a mesma coisa. Desde o
instante em que nasci, já era culpado, condenado a viver, obrigado a pertencer
a um estado, a ser soldado, a matar, a pagar impostos para comprarem armas.
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As coisas não
vão bem quando a Humanidade fatiga excessivamente sua inteligência e procura
ordenar com o auxílio da razão as coisas inacessíveis à razão. Então surgem
ideais, tais como os dos americanos ou dos bolchevistas; ambos são
extraordinariamente racionais, mas desejando ingenuamente simplificar a vida,
acabam por violentá-la de maneira terrível. A igualdade do homem, um ato ideal
das épocas pretéritas, está a ponto de se tornar um clichê. Talvez nós, os
loucos, consigamos enobrecê-lo um pouco.
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A vida é toda
assim, meu filho, e temos de deixá-la ser assim, e se não formos idiotas
devemos rir-nos dela. Pessoas do seu nível não devem criticar o rádio ou a
vida. Aprenda primeiro a ouvir! Aprenda a levar a sério o que merece ser levado
a sério, e a rir de tudo o mais!
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