sábado, 1 de novembro de 2014

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Vida de Santo




Engana-se quem pensa que vida de santo é um infinito dolce far niente. Nem ao mais preguiçoso deles é dada a graça de ficar chupando chicabon eternidade afora. E aquele estereótipo de se recostar em nuvens, entre cânticos e cítaras, é mais coisa de anjo que de santo - e anjo de quadro barroco, idealizado e fora de contexto histórico.

Santo passa maus bocados, verdade seja dita. E nem por isso os devotos lhes tratam com o devido respeito, o respeito que o santo, justamente por ser santo, exige.

Por exemplo, esse estranho hábito terráqueo de entornar no mínimo 10% da cachaça no chão da venda, dizendo que é pro santo. Posso dizer com certeza que todos eles abrem mão da homenagem e passam muito bem sem ela. Se gostasse mesmo de água que passarinho não bebe, santo não seria santo. Muito pelo contrário.

Depois, tem outra: manda a Justiça Divina que, toda vez que se oferece algo pro santo, e não se especifica pra qual santo é o presente, a oferenda seja repartida por todos indistintamente. Vai daí que cada gole oferecido é dividido, em partes iguais, para a santosfera inteira. Sabendo-se que os santos são atualmente milhares, a cada um cabe geralmente uma gotinha de nada - e não é isso que vai desviar a santaiada do bom caminho. Até aí, nada de mais. Mas acontece que se a gente levar em conta que cada pinguço manda pra goela pelo menos uns três copos da marvada, e que só no Brasil temos milhões de alcoólatras, o estrago divino é grande, provocando em vários deles internações frequentes - quando não diárias. E as mais prejudicadas são as santas, que com um tiquinho de martini já estão trançando as pernas.

Outro problema sério são as imagens dos santos - tanto as pintadas quanto as esculpidas. Tem santo lá em cima que excomunga sem dó alguns dos displicentes artistas terrenos, pela falta de semelhança deles com as imagens que os representam. Esse tipo de episódio produz verdadeiras catástrofes estéticas. Outro dia mesmo toda a corte celeste saiu em passeata, com cartazes, faixas e gritos de guerra, protestando contra um lote de 250 estátuas de Santa Edwiges que saiu de fábrica com cara de Rita Cadilac. Um repulsivo sacrilégio, que merece punição exemplar. Para evitar novos contratempos, São Tomé propôs em assembleia a instituição do selo "Ver para Crer", que certifica a imagem beatificamente reconhecida, ou seja, aquela que tem a benção do respectivo santo e que guarda nítida semelhança com a sua figura dos tempos de carne e osso.

Além desse tipo de desrespeito, há também injustiças que agridem e irritam a turma de auréola. A maldosa e irônica expressão “Na descida todo santo ajuda” vem merecendo, de uns tempos para cá, um revide da parte dos ofendidos. Julgam eles que a frase denota uma certa acomodação, dando a entender que os santos têm braço curto e que não se empenham nas tarefas mais difíceis, onde só um milagre pode resolver a parada. “Não vamos ajudar mais na descida, ainda que o carro do sujeito esteja sem freio. Pois que se espafitem, aprendam a lição e vão para o inferno” desabafa um conhecido santo, que não quis se identificar.


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