quinta-feira, 13 de agosto de 2015

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Lugares, pessoas, impressões

    
Este texto apresenta impressões. As passagens que mais me sensibilizaram na travessia cuidadosa do romance:
   
Lugares que não conheço, pessoas que nunca vi. Cecilia Giannetti. 232pp. Agir Editora Ltda. ISBN 978-85-220-0652-6. Rio de Janeiro, 2007.
   
Uma simples escolha de trechos (ou veículo que leva a profunda reflexão).
   
..viagem..da..boa....deixe-se..levar....
   
Seu amor tem várias obturações e, quando quer ir embora, mostra todas.
   
Há uma legião descontente inteira contra um anjo apenas.
   
O gato era o mediador do afeto entre ela e o homem. O poeta beijava o gato entre as orelhas e trancava-se no escritório. Ela beijava o gato entre as orelhas ao deixar o duplex pela manhã e ao chegar, à noite. O gato recebia tudo em silêncio estático. Recebeu tanto amor por tabela que cresceu forte.
   
Então olho para ele e me esqueço.
   
Então, se viesse a chance de se extraviar, de se tornar um corpo, um nome, uma pessoa diferente de aquela que acaba de trocar o bar pela rua, a chance viria agora e seria esta.
   
Olha para baixo, pela janela, o mosaico da feira se formando de madrugada:
   
O vozerio sobe confuso desde o meio da noite e vai seguir o dia inteiro junto com um chocalho incansável ditando o ritmo para as ancas gordas passarem com suas sacolas ao lado, como burros de carga apetitosos, os homens abafam no grito de alho e de fruta o grito de foda que não dão nessas donas. O mundo é tão cheio de carne.
   
Tem certeza, é a própria alma que expõe diante de si no espelho. Uma alma dedicada ao bem-estar de seu invólucro, à celebração de seu abrigo, um espírito firme cujos incansáveis trabalhos culminaram na construção do templo que ela pode observar orgulhosa e oferecer sem reservas ao escrutínio dos outros, reproduzindo-se em milhões de aparelhos de TV.
   
A consciência, meu bicho noturno, me diz que isto é um tipo de morte. É um tipo de morte em que o corpo persiste, mas inanimado, vazio do que fomos.
   
Amplificados, os ecos embaralham-se distorcidos, batem-se e rebatem-se contra as paredes do museu que despejo aqui, quebrando as peças mais delicadas na fúria de sua repetição.
   
Finíssimas lombadas de capas de vinil me assombram há algum tempo, constantemente ondulando sobre as prateleiras de uma estante de ferro que tenho na sala. Muito antes disso eram os traços dos meus amigos que também já oscilavam.
   
Hoje saio sem me despedir, por uma porta que não existe, pulando uma janela que não está aqui, fugindo do assunto – com gritos de montanha-russa e os braços jogados pro alto –, descendo ao parágrafo seguinte.
   
Sabe por que o mundo anda fora de controle?, eu digo para ele. Porque Deus se distrai olhando os gatos.
   
“Quero morrer neste duplex?” A pergunta que faz alguém anunciar um imóvel nos classificados é a mesma a atravessar a cabeça branca da velha que inspeciona o apartamento.
   
Mil preces gentis por nós que não conseguimos ainda ligar o som nem o computador, desistimos de arrumar tudo na mesma noite, na casa nova, e bebemos cerveja no meio das caixas de papelão e sacos de lixo pretos cheios do meu lixo, que não conseguimos ainda ligar a televisão nem sabemos onde colocar o sofá, esperamos ansiosamente o telefone tocar e esquecemos: também não conseguimos ligar o telefone neste novo lugar.
   
Tenta imaginar como foi que aconteceu. Um relâmpago, e a história vem no clarão. Desaparece se tenta resumi-la, pois não é uma seta, não é uma lembrança que surge reta, fechada – é de avanço e recuo, ondas.
  
O que vivemos aqui é um tipo de morte, diz o obituário recitado pela voz, feita de palavras desconhecidas que sobem do chão, atravessam as paredes carregadas pela fumaça da paranóia enquanto ela rola o corpo entre infernos e alascas numa mesma estação dessa cidade sempre quente onde todos virarão pó, e todos serão vulto de terror espesso e presas desdenhosas, crescendo ao seu redor como muros de chapisco num subúrbio cinza que é cimento cru e tédio, onde as crianças não têm vontade de ir brincar na calçada. Ficam trancadas nos quartinhos remoendo pequenas culpas, sofrendo mais que os corpos ardendo de infância deviam aguentar, e aguentam, remorsos sufocados na frente da TV, crescem dali para casulos ainda menores. O crescimento é uma atrofia.
   
Os fatos são permeáveis aos mandos e desmandos de quem se lembra deles como pode e como quer.
   
A pele finíssima parece de plástico, uma frágil membrana esticada sobre a área onde determinou, com a convicção dos seus 13 anos, que a evidência de uma órbita mais boçal dele mesmo não poderia ser erradicada com o tempo. Pode. A marca com que foi admitido à boiada da nossa geração era um ideograma chinês representando a Paz de Espírito.
   
Muita gente se perdeu. O mundo encolheu e muitos se encontram nessa situação indesejada. No furgão, a caminho da Central do Tédio, mesmo as ruas que eu conhecia bem agora me parecem uma armadilha.
   
Viramos para olhá-los e, por um momento, o tempo em que dura o sinal fechado, adoramos os chineses da maneira complicada que adoramos tudo o que é diferente de nós.
   
A Central do Tédio é o refúgio das crianças eternas que, secretamente, imaginam terem fracassado em algum setor da vida, ou em vários. Sustentam a juventude numa pose de quem sabe que uma coisa muito boa espera por eles mais à frente. Mesmo que tudo em volta sejam destroços e seus dentes sejam de porcelana, postiços. A Central do Tédio fica no meio de lugar nenhum.
   
Quando somos crianças, a maioria das adivinhações que nos propõem são jogos de palavras que têm como retorno o absurdo. Se ninguém se esquecesse da estrutura dessas charadas – uma solução esdrúxula para uma premissa absurda – não esperaríamos desfechos lógicos no futuro.
   
Qualquer bobagem realizada nas condições generosas que a juventude já ofereceu ganha proporções épicas na imaginação.
   
A Central do Tédio não condena a fé cega em projetos desesperados. Ainda que tudo sejam apenas ruínas.
   
Soubemos, a partir daquele dia, da outra realidade. E do medo que, de tão puro, é invisível, ridículo porque não deixa saída e não sabe como entrou.
   
Acendo um cigarro. Fumar também é uma forma de exercício, já que altera a respiração e há movimentos repetidos. Aqui sou diferente de tudo que você sabe de mim, não sigo as regras daquela nossa casa, existo livre de quase todo desconforto mudo que morou conosco. Aqui faz tanto silêncio que dá pra ouvir o cigarro queimando.
   
Penso que um homem sabe que o riso leva a Deus, que Deus fala com o homem através da comédia e não da miséria, a que nos tornamos indiferentes por sua persistência. Um homem não tem medo do seu nome na boca de uma mulher. Um homem me abraça inteira num aperto de mão.
   
Quando chama meu nome, não me faz uma exigência. É pergunta mas não é dúvida, ele sabe que vou. Gosto dos meus dias com ele do jeito que são, da alegria de não me justificar.
   
Atendo porque não desejo ignorá-lo.
   
Um tumulto nos olhos.
   
Da primeira vez que toquei com as mãos os ossos dos quadris dele, empurrava aberta uma janela e o sol me lambia por dentro. Não era dia.
   
Tiro os sapatos, tiro o mamilo esquerdo da blusa roçando-lhe a ponta com a ponta dos dedos.
   
Levanta minha saia sem que eu tenha que fazer nada, afasta a calcinha e sinto a língua como ele inteiro, que vem em seguida, e é total agora, tenho que abrir mais.
   
O que possibilita os jogos no silêncio e no escuro é o timbre onipresente. Mesmo que não diga nada depois de começar, o grave escapa em sua respiração.
   
Se eu não me abrir o máximo por cima dos ombros dele, meu ar vai ser cortado.
   
Preciso prendê-lo com toda a força entre as pernas ao mesmo tempo em que abraço seu pescoço com os pés e busco mais fundo onde o fundo está em mim.
   
Ela ajuda na sua escavação, o homem cava e ela precisa ir junto ao próprio fundo. Ele revela a anatomia interna que ela imagina ter, um pintor que reproduz paisagens sonhadas em segredo.
   
Tudo que sei dele pulsa e tem movimentos próprios em mim, o comando vibra no tom certo; no fundo, a única palavra que diz.
   
O problema da saudade – tenho vontade de gritar, pela janela, ao homem que desaparece na rua mal iluminada – é que é sentida em relação a lugares, pessoas, coisas, bichos e épocas insubstituíveis.
   
Não existe sentir sem intensidade.
   
Negar uma fração sequer dessa força pode viciar a percepção e cristalizar no peito o cerne oco da história de quem não procura mais nada para contar.
   
Amamos o que é insubstituível.
   
Sabemos que nem tudo que você diz ter esquecido deixou de existir, não é?
   
É então que acontece.
   
As pessoas e os lugares dançam, embaralham-se. Tornam a se mover.
   
Posso descansar e sua imagem permanecerá assim gravada no mundo.
   
Estarão todos sempre aqui, dançando na minha frente.
   
Eu poderia dizer, olhando para dentro da câmera, para dentro da sua casa: Conheci uma pessoa feliz.
   
De tudo que viveu, diz apenas que passou. As escolhas que fez modificaram sua vida, mas ela não imagina nem por um segundo o que poderia ter sido se.
   
Tenho gavetinhas na cabeça, esvazio quando não quero mais nada do há dentro delas.
   
A felicidade é assim: aconteceu.
   
   
   

    

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