sexta-feira, 4 de setembro de 2015

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DEVORADORES DE ORELHA



Somos os devoradores de orelha, e viemos livrá-lo do mais avassalador infortúnio do mundo pós-moderno: a falta de tempo. No caso, falta de tempo para ficar up-to-date com o universo literário daqui e d'além mar. Nem que seja aquele leve e basiquinho verniz cultural.

Os lançamentos editoriais são tantos que, ainda que fosse feita a leitura só das orelhas, o tempo dispendido seria enorme. Como conhecimento é o ouro do século 21, surgiu dessa necessidade a ideia do nosso negócio.

Nossos leitores de orelha, hoje totalizando 314 profissionais intensivamente treinados, alternam-se em turnos estafantes de 12 ou mais horas e têm de recorrer a técnicas de leitura dinâmica para darem conta de suas cotas diárias de resumos. Lidas, cada orelha gera uma mini-sinopse que é enviada ao cliente via eletrônica, com o básico que ele precisa saber para não passar vexame numa conversa. Claro que o assinante do serviço determina as áreas de interesse sobre as quais necessita manter-se atualizado.

Suponha uma saia justa numa festa, onde perguntam a você o que achou de determinado livro. Basta simular que o celular está chamando, você se afasta um pouco, consulta o resumo de orelha correspondente e volta dominando o assunto. Em linhas bem gerais, mas o suficiente para não chutar a bola para fora do estádio. 

O serviço é eclético nos gêneros e inclui também os resumos de orelha daquelas obras fundamentais, que dão estofo à cultura geral do indivíduo. Grandes clássicos, como "Em busca do tempo perdido", "A montanha mágica", "Dom Quixote" e "Crime e Castigo" estão disponíveis para pronta entrega. Não só na forma de e-resumos, mas de falso livro também. Em volumes novíssimos, de capa dura, ou artificialmente manuseados por processo industrial de envelhecimento. O recheio é em isopor, proporcionando leveza e facilidade na remoção quando for a hora de tirar o pó da estante. 

Oferecemos também uma sensacional novidade, vinda há poucas semanas da Europa: o isopor com capa refil. O cliente adquire a princípio apenas os isopores e vai trocando periodicamente as capas com novidades e best-sellers da indústria editorial, simulando uma pretensa atualização com o que de melhor vem chegando às livrarias. É sua decisiva oportunidade de postar no Instagram e em outras redes sociais fotos suas em frente à biblioteca-cenário, legando à sua extensa rede de amigos a imagem de um erudito com sólida formação literária e artística. 

Como em todo negócio inédito e de sucesso, não demorou muito para que começasse a surgir concorrência desleal. Alertamos a todos que o referido concorrente, o qual por razões éticas não iremos citar o nome, deixou recentemente um ex-Presidente da República em situação diplomática vexatória numa cerimônia de entrega de título de Doutor Honoris Causa. Assinante do serviço, o popular ex-ocupante do Alvorada precisou recorrer à mini-sinopse de uma obra de Santo Agostinho e deparou-se com a orelha de "50 tons de cinza". Uma falha imperdoável, que atribuímos à incompetência dos leitores de orelha desse relapso colega de mercado.


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