Incompreendido
Ruan andava rente à parede, propriamente
arrastava-se sem se preocupar com as protuberâncias esfolando o ombro e o braço
direito. Aos trambolhões seguia determinado. Não dava bola para a caterva
que vinha em sentido contrário. Às vezes proferia frases soltas, algumas delas
palavrões. Chegavam a empurrá-lo para o lado sem motivo. Porque agiam assim
contra ele? Não fizera nada. Apenas estava andando normalmente como todo mundo
estava. Seus passos eram retos, decididos, trazia o corpo empinado como
disseram que deveriam ser esticados, os ombros levantados. Então? Por que toda
essa violência? Nada fizera. Só porque não suportava ficar em casa ouvindo
baboseiras, preferindo a rua não era motivo para que fosse tratado dessa
maneira. Bebera um pouco, reconhecia, mas foi só um pouco nada mais. Não estava
com a mente embotada pelo álcool, sabia o que estava pensando, onde pisava o
que estava olhando.
- Você não presta, não faz nada, é um
parasita. – dissera o pai.
Como! Parasita? Onde foi que ouviu essa palavra? Não, onde foi que leu essa palavra? Livro, filme... Ah! Lembrou. Os Parasitas, de Daphine Du Maurier. Que falta de criatividade do pai, pensou desgostoso. E eu que sou parasita? E ele? O que é? Parasita e meio, ora bolas. Só sabe me chutar, xingar, falar mal dos outros, nem liga para mãe. Pelo menos tento alguma coisa. O que? Escrever. Não está bom? Escrever não é profissão. Mas será quando me descobrirem. E por falar nisso, percebo que está nascendo outro personagem, quem sabe com esse consigo deslanchar legal.
Como! Parasita? Onde foi que ouviu essa palavra? Não, onde foi que leu essa palavra? Livro, filme... Ah! Lembrou. Os Parasitas, de Daphine Du Maurier. Que falta de criatividade do pai, pensou desgostoso. E eu que sou parasita? E ele? O que é? Parasita e meio, ora bolas. Só sabe me chutar, xingar, falar mal dos outros, nem liga para mãe. Pelo menos tento alguma coisa. O que? Escrever. Não está bom? Escrever não é profissão. Mas será quando me descobrirem. E por falar nisso, percebo que está nascendo outro personagem, quem sabe com esse consigo deslanchar legal.
Um personagem, e como seria esse personagem?
Seria, ou deverá ser um personagem depravado, inescrupuloso, sádico,
prostituto, michê que só quer ter prazer para si próprio pouco se lixando para
os prazeres dos outros. Um moleque viciado, mas não em drogas pesadas, só na
maconha, que faz da Avenida Paulista sua praça, sua morada, seu campo de caça.
Ih! Que barra! Conseguirá criar um personagem assim? Tentará claro que tentará,
não foi assim das outras vezes? Foi então nada de se preocupar com o se
conseguirá ou não. Escreva, o que vier a mente, depois apara, reescreva quantas
vezes for necessário, moldando o personagem.
Ruan monologava enquanto pisava nos raios do sol banhando a calçada larga, nova da avenida. Como era gostoso andar nessa calçada renovada, limpa sem os costumeiros camelos a sujá-la. Nisso bateu num obstáculo. Parou. Olhou o que era. A multidão estacionara na beira da calçada esperando o sinal abrir. Um sujeito virou o rosto olhando feio para ele. Deveria se desculpar? Não deveria, e se desculpar por quê? Por ser distraído? Não me desculparei. Será que nunca se distraiu na vida? Claro, que já. O distrair é necessário para cruzarmos olhares de ódio ou de raiva. Ruan não tinha olhar de ódio e muito menos de raiva, e sim, um olhar distraído, fora de ângulo, numa direção além do sujeito. Assim que o sinal abriu, sem saber por que, atravessou junto com a caterva.
Atravessou a rua seguindo a multidão. Seguia o instinto do sujeito que olhou feio para ele. Seguia no desvão da vida. Passeou o corpo dolente por baixo do MASP. O espaço que se estende por sobre a rua lá embaixo dando sensação de solidão mórbida de paz. Inclinou meio corpo, o nada que o separava entre o parapeito até o asfalto que parecia minúsculo, enchia-o de dolorida angústia em abraçar tudo aquilo flanando no espaço feito pássaro urbano. Respirou fundo. Sentou dando as costas para o mundo rugindo lá embaixo. Trouxe a atenção para o mundo aqui em cima, forçou-se a observar o que ocorria a sua volta. À direita, meio que distante estava um casal de namorados aos beijos e abraços. À esquerda, dois mendigos aproveitavam a sombra da tarde para descansar a fome num pequeno cochilo. Como colocaria o personagem nesta cena, nesse ambiente de normalidade aparente? Como agiria diante das circunstâncias? Ficaria parado, conversaria com alguém, ou esperando que o abordasse puxando assunto? Não sabia, não tinha noção. Teria que esboçar com traços psicológicos, social e sexualmente no contexto da história. E a história? Como seria? Droga! Não tinha paciência para essas coisas. Gostava de imaginar ao mesmo tempo em que ia escrevendo. Como agora. Imaginar o seu “eu” dentro dessa cena em que se encontrava. O seu “eu”, essa é boa. Seria como aquele sujeito aos abraços e beijos com a namorada? Ou mendigo como esses que estão dormindo? Para isso precisava ter conhecimento razoável sobre eles. Que tal chegar neles para uma entrevista? Diria que era repórter de uma revista e que estava fazendo uma determinada pesquisa. E o que perguntaria? Sei lá, muitas coisas. Mesmo que formulasse um questionário essencial, ele não ficaria realmente conhecendo-os para tê-los como modelos de personagem. Talvez, entrando na pele deles, no mundo deles vinte e quatro horas, e, mesmo assim, não teria um personagem cem por cento.
Ruan monologava enquanto pisava nos raios do sol banhando a calçada larga, nova da avenida. Como era gostoso andar nessa calçada renovada, limpa sem os costumeiros camelos a sujá-la. Nisso bateu num obstáculo. Parou. Olhou o que era. A multidão estacionara na beira da calçada esperando o sinal abrir. Um sujeito virou o rosto olhando feio para ele. Deveria se desculpar? Não deveria, e se desculpar por quê? Por ser distraído? Não me desculparei. Será que nunca se distraiu na vida? Claro, que já. O distrair é necessário para cruzarmos olhares de ódio ou de raiva. Ruan não tinha olhar de ódio e muito menos de raiva, e sim, um olhar distraído, fora de ângulo, numa direção além do sujeito. Assim que o sinal abriu, sem saber por que, atravessou junto com a caterva.
Atravessou a rua seguindo a multidão. Seguia o instinto do sujeito que olhou feio para ele. Seguia no desvão da vida. Passeou o corpo dolente por baixo do MASP. O espaço que se estende por sobre a rua lá embaixo dando sensação de solidão mórbida de paz. Inclinou meio corpo, o nada que o separava entre o parapeito até o asfalto que parecia minúsculo, enchia-o de dolorida angústia em abraçar tudo aquilo flanando no espaço feito pássaro urbano. Respirou fundo. Sentou dando as costas para o mundo rugindo lá embaixo. Trouxe a atenção para o mundo aqui em cima, forçou-se a observar o que ocorria a sua volta. À direita, meio que distante estava um casal de namorados aos beijos e abraços. À esquerda, dois mendigos aproveitavam a sombra da tarde para descansar a fome num pequeno cochilo. Como colocaria o personagem nesta cena, nesse ambiente de normalidade aparente? Como agiria diante das circunstâncias? Ficaria parado, conversaria com alguém, ou esperando que o abordasse puxando assunto? Não sabia, não tinha noção. Teria que esboçar com traços psicológicos, social e sexualmente no contexto da história. E a história? Como seria? Droga! Não tinha paciência para essas coisas. Gostava de imaginar ao mesmo tempo em que ia escrevendo. Como agora. Imaginar o seu “eu” dentro dessa cena em que se encontrava. O seu “eu”, essa é boa. Seria como aquele sujeito aos abraços e beijos com a namorada? Ou mendigo como esses que estão dormindo? Para isso precisava ter conhecimento razoável sobre eles. Que tal chegar neles para uma entrevista? Diria que era repórter de uma revista e que estava fazendo uma determinada pesquisa. E o que perguntaria? Sei lá, muitas coisas. Mesmo que formulasse um questionário essencial, ele não ficaria realmente conhecendo-os para tê-los como modelos de personagem. Talvez, entrando na pele deles, no mundo deles vinte e quatro horas, e, mesmo assim, não teria um personagem cem por cento.
Olhava para o transito que se desenrolava
quando um rapaz sentou ao seu lado.
- Olá. Morgando ao sol da tarde? – perguntou
o rapaz.
- Pois é mano, descansando a carcaça como
lagarto.
- Tá afim?
- Afim do que.
- Uma pitada?
- Uma pitada?
- É, ou nunca deu
uma...?
Uma pitada! E por
que não? Quem sabe as coisas se transformariam na rapidez de um piscar de
olhos. Numa freada de carro, ou mesmo, num... Relâmpago ou sei lá o que.
Aceitou.
- Obrigado. Aceito.
- Obrigado. Aceito.
Aspirou lentamente
o cigarro, o sabor adocicado queimou a garganta e esparramou pelo pulmão
levando-o a tossir, os olhos lacrimejaram ardentes. Aspirou novamente, agora
com mais firmeza consciente dos efeitos. De repente o mundo tornou-se livre de
preocupações, nada mais o atazanava, poderia escrever sobre o que quisesse que
sairia bem, o corpo se relaxou, despertando da prisão da carne, o sangue fluía
em seus ouvidos murmurejando vida. Estava feliz. Quis dizer isso ao
companheiro. Virou-se para falar, quando percebeu que ele estava longe, parecia
que estava fugindo. Andava depressa e olhava para traz como se estivesse sendo
seguido. Instante depois viu dois policiais no alcance do rapaz. Rapidamente,
apagou o cigarro enfiando a bituca no bolso. Decidiu sair daquele lugar.
Caminhou para a avenida e seguiu em sentido contrário aos policias. Atravessou
e entrou no parque Trianon.
Passeava por entre as alamedas projetando sombras de alívio. Queira continuar pitando a bituca. Primeiro precisava acendê-lo, mas como, não tinha fósforos? Nisso passou um senhor com cigarro na boca.
Passeava por entre as alamedas projetando sombras de alívio. Queira continuar pitando a bituca. Primeiro precisava acendê-lo, mas como, não tinha fósforos? Nisso passou um senhor com cigarro na boca.
- Por favor,
poderia me dar fogo?
O senhor, cabelos
bem grisalhos, desconfiado parou e passou o cigarro aceso para ele. Acendeu a
bituca com longas tragadas.
- Obrigado, senhor.
- Obrigado, senhor.
Deus as costas e
não viu que o senhor ficou observando seu caminhar. Ruan procurou num lugar
afastado do movimento. Queria fumar despreocupado, sem interrupções. Achou um
banco isolado quase no meio das árvores. Dirigiu-se para o banco. Esticou-se de
comprido, as pernas pendiam para fora do banco. Acima dele as ramagens verdes
das árvores cruzavam-se em intricados galhos conduzindo seu pensamento para
todos os lados.
Como é gostoso a
paz das sombras embalando os sonhos, pensou. Nisso uma formicação subia por
seus pés. O que seria? Não quis saber. Ficou imóvel sentindo o formigamento
pelas pernas, pelos joelhos, pelas coxas, e notou que abriam a braguilha da
calça. Delicia de viagem, disse para si mesmo. Excitado deixava-se bolinar sem
se preocupar por quem fosse. Talvez, alguém querendo aventura sexual, e me viu
topado dando sopa, procurou se arriscar. Ainda bem, que vá em frente.
Relaxou o corpo, e
se viu por entre as folhas das árvores, flanando entre os galhos livre de toda
e qualquer motivo de preocupação. Queria que essa sensação se tornasse
definitiva, que ficasse sempre ali nas alturas entre as folhas e sombras úmidas
de liquido quente.
Um frêmito perpassou pelo corpo. Caiu direto no banco. Doíam as costas por ter deitado de mau jeito. Sua calça apresentava uma enorme mancha úmida e escura. Nesse momento, ouviu duas senhoras que passavam:
Um frêmito perpassou pelo corpo. Caiu direto no banco. Doíam as costas por ter deitado de mau jeito. Sua calça apresentava uma enorme mancha úmida e escura. Nesse momento, ouviu duas senhoras que passavam:
- O mundo está perdido
mesmo. Não há mais censo de vergonha.
- Horrível mesmo. Acabou-se o romantismo, minha irmã. Hoje em dia faz-se qualquer coisa em qualquer lugar.
- Horrível mesmo. Acabou-se o romantismo, minha irmã. Hoje em dia faz-se qualquer coisa em qualquer lugar.
E sumiram na curva
da alameda.
pastorelli
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