sábado, 5 de dezembro de 2015

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VENDO ESTANTE POR MOTIVO DE MUDANÇA



I
Só quem foi geração coca-cola naqueles entediantes 80 sabe o quanto custava juntar dinheiro para levar um LP da loja. O jeito era apelar para o compartilhamento de arquivos da época - pegar os discos emprestados e gravar em fita cassete, de 45, 60 ou 90 minutos. Você cedia os seus xodós para o vizinho, e ele os bolachões que tinha para você. Com mútua promessa de voltarem sem riscos nem barulho de lenha crepitando na lareira.

II
Antes do três-em-um National que ganhou no Natal de 82, um que fazia a proeza de gravar direto para a fita enquanto o LP tocava, o procedimento era outro. Colocava-se o disco na sonatinha portátil e posicionava-se o microfone do gravador bem perto do alto-falante da vitrola. Só que o microfone aberto captava, além da música, todos os outros sons que fossem emitidos nas imediações. Gritos da mãe chamando para o almoço, canto de cigarra, chuva caindo, latido de cachorro, a perua vendendo pamonha de Piracicaba e o que mais fosse auditivamente perceptível no ambiente doméstico.

III
Quem não tivesse vizinho nem disco para compartilhar, que ficasse o dia todo esperando a única FM que pegava num raio de 150 km, até que o DJ resolvesse tocar a música que você queria. E apertar o play a tempo para a gravação não comer um pedaço dela. 

IV
Bem-vindo à era do compact-disc, o revolucionário CD. Som puro, sem riscos, espetacular capacidade de armazenamento. Nunca mais ficar mirando a faixa no acetato para não errar a música. Nunca mais caneta bic na fita cassete. Chegamos ao ponto máximo da tecnologia. O que de mais moderno poderia aparecer depois disso?

V
Está tudo na rede, é só ter tempo e paciência para garimpar. Dê a busca pelo nome da música ou do álbum e vá conferindo as ocorrências. Alguns perigosíssimos sítios virtuais já entregam, numa baixada só, discografias inteiras. A raiva é quando está tudo certo, clica-se em "download" e aparece a mensagem dizendo que o arquivo foi removido por violação de direito autoral. De 2002 a 2013, foram mais de dois mil álbuns baixados e dois milhões de cavalos de troia reunidos em um fabuloso haras no computador. O HD inteiro perdido, inapelavelmente. Uma saga de trabalho insano e murros sem conta em cima da bancada, mais de uma década de sacerdócio cibernético jogados no lixo.

VI
Ali estão todos eles forrando as quatro imensas estantes, produtos de milhares de horas a menos de sono. Metade das fitas oxidando, metade travando ou rompendo no rebobinamento. Metade dos discos com os sulcos perdidos de poeira, metade com os encartes devorados pelas traças. Metade dos CDs travando na terceira faixa, metade com os códigos binários estranhamente embaralhados.

VII
Você acorda com vontade de escutar o Réquiem de Mozart. Spotify, Mozart, Réquiem, pronto. Só em um dos vários serviços de streaming,  mais de duzentas extraordinárias versões diferentes para se ouvir de graça, quando quiser, liberando metros e metros de estantes só para livros e porta-retratos. Enquanto escolhe qual vai querer escutar primeiro, a incômoda sensação de que quem deveria estar na estante tomando pó é você mesmo.



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