sábado, 9 de janeiro de 2016

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ABDUZIDO



O abade Nathanael começou, de fato, a acreditar cegamente em Deus depois da primeira volta no disco voador. Até então, sua fé um tanto vacilante fazia-o crer burocraticamente no Ser Supremo em 3 pessoas, conforme os catecismos, sem maiores contestações. Mas no íntimo o incomodava saber que o que sentia estava longe de ser adoração convicta, a despeito dos 28 anos de abadia. Parecia estar enganando a Deus, se existisse, e a si, de cuja existência também tinha sérias dúvidas. Até que o pequeno ser ocre e pegajoso lhe apareceu no claustro, lhe tomou pela mão e o levou, por entre nuvens, ao cerne de todas as perguntas até então sem respostas.

Cada pequena luz do painel da nave disparava uma lembrança. O machado rachando a lenha para mortificar a carne e elevar o espírito. O ofício em oração e canto, o banco duro, a geada emudecendo o sino, o genuflexório. O olhar do ET era para ele uma homilia muda, havia um sermão interminável sendo dito e escutado naquele silêncio solene e sem gravidade. Atravessavam os dois, em segundos, nebulosas inteiras. A abadia, em todo o seu esplendor, cheirando a vela e incenso, talvez fosse um delírio de madeira e mármore, e toda sua vida uma distração momentânea da qual acordava agora. Talvez fosse a vida de verdade um voo a esmo junto ao ET, e que tudo o que imaginava ter vivido não passasse de uma soneca tirada ali, na poltrona de co-piloto. Mas explicar como aquele o hábito puído, o crucifixo e o olhar contrito refletido nos instrumentos de bordo?

Assim foi aquela volta, a primeira de tantas. Entre uma lua e um sol qualquer do calendário, lá estava o serzinho ocre, como que cumprindo uma missão celeste, pronto para de novo levar consigo o abade. 

Um belo dia, foi a vez do abade tomar o ET pela mão e levá-lo, escondido debaixo do hábito, para assistir à missa matinal. Desobedecendo a recomendação de ficar calado, ele soltou um sonoro "Ele está no meio de nós" após o padre dizer "O Senhor esteja convosco". Lançou um olhar cúmplice para o abade e sacou da algibeira extraterrestre um retratinho de família, com ele pequenino na pia batismal, rodeado pelo pai, a mãe e os padrinhos. Todos ocres. Todos boa gente como ele. 


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