Se
território pode ser compreendido como espaço, seja ele familiar ou estranho,
talvez este seja um ponto importante para se atentar ao realizar a leitura de Face emplumada, primeiro romance do
escritor baiano radicado em São Paulo, Gláuber Soares. De certo modo, trata-se
de um romance de estrada, de desterritorialização, uma vez que o deslocamento
geográfico, do interior de São Paulo à capital e de lá, ao sertão nordestino,
gera também certo nomadismo identitário. Ao se deslocar espacialmente, a personalidade
do narrador-personagem também se desloca, torna-se outra, não deixando de ser a
mesma.
Além
do espaço, outra instância que chama a atenção no romance é o foco narrativo. A
estória é contada em primeira pessoa pelo protagonista Guto, um jovem nascido
numa cidade do interior de São Paulo, que migra para a metrópole com o intuito
de trabalhar. Na primeira parte da obra, denominada Azul-marinho, há na sinestesia das cores enunciadas, mas não
contempladas por conta do daltonismo, um sentimento de isolamento que
acompanhará a personagem, funcionando como metonímia do seu fazer parte sem
pertencer: Perceber, enfim, todos os tons
que não vejo. Mas ainda tenho dúvida. Eu seria mais feliz ao encontrar a
diferença entre o marrom e o vermelho? (pg. 13)
Voltando
à questão do espaço, do território, percebemos que a mudança de área
profissional, o deslocamento do setor têxtil, onde lidava com cores, para a
matemática financeira, parece uma metáfora para anular a sensibilidade exigida
na mistura que cria as cores, atendendo o apelo insensível dos números.
Para
além das questões que envolvem o espaço e o foco narrativo, o modo como o tempo
é tratado em Face Emplumada, também
chama muito a atenção. Na mescla de temporalidades que habita a mente humana,
ao rememorar sua infância, Guto se move para dentro do quarto que habitava na
casa dos pais quando criança, lá encontra a sua primeira amiga, a barata Linda,
talvez, o trecho mais bonito de toda a obra, demonstrando que a sua inadequação não é tão
radical quanto à de Gregor Samsa, pois ele reconhece no inseto um ser à margem,
mas não reconhece o inseto que há em si. Neste momento tão lírico da obra, o
foco narrativo se dissolve e não sabemos se estamos dentro do coração de Guto ou
da própria barata procurando por uma fresta pela qual poderia escapar da morte.
Outro fato que faz rememorar Kafka é a figura paterna, que vivendo do lado de
dentro do mundo, tenta trazer o filho para o mesmo lado por meio da violência.
Gláuber,
jornalista de formação, ao atuar no ambiente externo da obra como um mestre de
marionetes, associa a solidão de seu personagem com a possibilidade de observar
o mundo que o cerca, desde questões da microestrutura do poder, dentro da
empresa onde trabalhava, até problemas sociais como a epidemia do crack.
Não
poderíamos deixar à margem aqui, a ambiguidade visual de gênero adotada por
Guto e sugerida por meio de situações que ele vivencia, como quando cai no
golpe Boa noite, Cinderela, demonstrando
assim que o próprio corpo, ao menos dentro da narrativa, pode ser considerado
um território, dentro do qual haja a necessidade se se locomover para sentir de
maneira mais branda a inadequação. Este aspecto aponta uma ligação com a
admiração do protagonista por Ziggy Stardust.
Se
o ato de narrar está em vias de extinção, isso não é do conhecimento de Guto,
ao ouvir de um cliente do salão de cabeleireiro, a história de uma de suas
peripécias pelo nordeste, de moto, do encontro com uma galega numa fazenda,
Guto faz um plano e realiza ações para chegar ao destino sonhado. A figura da
moça branca, remonta a uma reminiscência do Romantismo e sua heroína. O
encontro com seu Galdino, o ancião narrador, põe Guto em contato com a cultura
oral, tal como indicam as epígrafes com versos de um provérbio baiano e da
canção Space Odity, de David Bowie.
Romance instigante, esse Face
Emplumada, cuja narrativa, numa linguagem ágil e certeira nos coloca em contato
com a odisseia deste Ulisses sem glória nem objetivos definidos. Anti-herói dos
tempos atuais em busca de si-mesmo por meio da alteridade. Vale à pena
conferir.
Texto escrito em parceria com o Escritor Daniel Lopes.
Seja o primeiro a comentar:
Postar um comentário