sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

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RESENHA DO ROMANCE "FACE EMPLUMADA"


Se território pode ser compreendido como espaço, seja ele familiar ou estranho, talvez este seja um ponto importante para se atentar ao realizar a leitura de Face emplumada, primeiro romance do escritor baiano radicado em São Paulo, Gláuber Soares. De certo modo, trata-se de um romance de estrada, de desterritorialização, uma vez que o deslocamento geográfico, do interior de São Paulo à capital e de lá, ao sertão nordestino, gera também certo nomadismo identitário. Ao se deslocar espacialmente, a personalidade do narrador-personagem também se desloca, torna-se outra, não deixando de ser a mesma.
Além do espaço, outra instância que chama a atenção no romance é o foco narrativo. A estória é contada em primeira pessoa pelo protagonista Guto, um jovem nascido numa cidade do interior de São Paulo, que migra para a metrópole com o intuito de trabalhar. Na primeira parte da obra, denominada Azul-marinho, há na sinestesia das cores enunciadas, mas não contempladas por conta do daltonismo, um sentimento de isolamento que acompanhará a personagem, funcionando como metonímia do seu fazer parte sem pertencer: Perceber, enfim, todos os tons que não vejo. Mas ainda tenho dúvida. Eu seria mais feliz ao encontrar a diferença entre o marrom e o vermelho? (pg. 13)
Voltando à questão do espaço, do território, percebemos que a mudança de área profissional, o deslocamento do setor têxtil, onde lidava com cores, para a matemática financeira, parece uma metáfora para anular a sensibilidade exigida na mistura que cria as cores, atendendo o apelo insensível dos números.
Para além das questões que envolvem o espaço e o foco narrativo, o modo como o tempo é tratado em Face Emplumada, também chama muito a atenção. Na mescla de temporalidades que habita a mente humana, ao rememorar sua infância, Guto se move para dentro do quarto que habitava na casa dos pais quando criança, lá encontra a sua primeira amiga, a barata Linda, talvez, o trecho mais bonito de toda a obra,  demonstrando que a sua inadequação não é tão radical quanto à de Gregor Samsa, pois ele reconhece no inseto um ser à margem, mas não reconhece o inseto que há em si. Neste momento tão lírico da obra, o foco narrativo se dissolve e não sabemos se estamos dentro do coração de Guto ou da própria barata procurando por uma fresta pela qual poderia escapar da morte. Outro fato que faz rememorar Kafka é a figura paterna, que vivendo do lado de dentro do mundo, tenta trazer o filho para o mesmo lado por meio da violência.
Gláuber, jornalista de formação, ao atuar no ambiente externo da obra como um mestre de marionetes, associa a solidão de seu personagem com a possibilidade de observar o mundo que o cerca, desde questões da microestrutura do poder, dentro da empresa onde trabalhava, até problemas sociais como a epidemia do crack.
Não poderíamos deixar à margem aqui, a ambiguidade visual de gênero adotada por Guto e sugerida por meio de situações que ele vivencia, como quando cai no golpe Boa noite, Cinderela, demonstrando assim que o próprio corpo, ao menos dentro da narrativa, pode ser considerado um território, dentro do qual haja a necessidade se se locomover para sentir de maneira mais branda a inadequação. Este aspecto aponta uma ligação com a admiração do protagonista por Ziggy Stardust.
Se o ato de narrar está em vias de extinção, isso não é do conhecimento de Guto, ao ouvir de um cliente do salão de cabeleireiro, a história de uma de suas peripécias pelo nordeste, de moto, do encontro com uma galega numa fazenda, Guto faz um plano e realiza ações para chegar ao destino sonhado. A figura da moça branca, remonta a uma reminiscência do Romantismo e sua heroína. O encontro com seu Galdino, o ancião narrador, põe Guto em contato com a cultura oral, tal como indicam as epígrafes com versos de um provérbio baiano e da canção Space Odity, de David Bowie.  
            Romance instigante, esse Face Emplumada, cuja narrativa, numa linguagem ágil e certeira nos coloca em contato com a odisseia deste Ulisses sem glória nem objetivos definidos. Anti-herói dos tempos atuais em busca de si-mesmo por meio da alteridade. Vale à pena conferir.


Texto escrito em parceria com o Escritor Daniel Lopes.



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