A escritora Heloisa Seixas nasceu no Rio,
onde mora. É autora de mais de dez livros de ficção, entre romances e volumes
de contos, tendo sido por três vezes finalista do Prêmio Jabuti. Heloisa também
escreveu um livro de não-ficção sobre o mal de Alzheimer de sua mãe, O Lugar
Escuro (Objetiva, 2007), que depois adaptou para o teatro. É casada com o
escritor Ruy Castro e tem, de um casamento anterior, uma filha, Julia Romeu,
tradutora e autora teatral.
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Heloisa Seixas chama de quase romance a sua
obra O Oitavo Selo, publicada pela Cosac Naify no ano de 2014. O livro discorre
sobre algumas ocorrências marcantes na vida do também escritor Ruy Castro, com
o qual Heloisa está casada há mais de 20 anos. Logo, são eventos de enorme
significado para a própria autora, descritos com grande vigor e sensibilidade,
capturando o interesse do leitor do início ao fim, como se também ele (o leitor)
estivesse presente – compartilhando com Heloisa e Ruy dos acontecimentos narrados.
Inicialmente, uma questão a ser levantada diz
respeito ao fato da autora considerar esta sua obra um quase romance. Isso
remete aos limites tênues estabelecidos entre aquilo que denominamos história
ou estória. Estas são fronteiras fluidas, dependendo de diferentes abordagens
interpretativas. No seu sentido estrito, um quase romance é, sem dúvida,
estória. Porém, numa compreensão mais inclusiva – aquela que leva em conta não
apenas os acontecimentos pura e simplesmente, agregando a estes também as
sensações e as percepções desencadeadas no sujeito – um quase romance pode ser
mesmo entendido como a própria história.
Neste breve texto, saindo pela tangente das
especulações acerca do que seria um quase romance, assume-se que O Oitavo Selo é
uma x-stória, deixando assim, abertas, ambas as possibilidades: hi-stória ou
e-stória. Cada um que interprete a narrativa como bem entender. E fica aqui a
minha forte recomendação de que Você leia O Oitavo Selo, por se tratar, de uma
obra interessantíssima e carregada de humanidade.
Finalmente, outra questão diz respeito ao
título escolhido para este breve texto. Ora, se o número oito está deitado
então, quando ele estiver de pé, será outra coisa, diferente dele mesmo. E,
assim como um símbolo dentro de outro símbolo, este breve texto nada mais é que
uma x-stória extraída de outra x-stória. Uma impressão pessoal sucinta de O
Oitavo Selo, tendo como matéria-prima frases retiradas do próprio livro.
Vale enfatizar, portanto, que a primeira e a
terceira partes deste texto não são de minha autoria. Mas essa já é outra
x-stória.
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E sabia que, enquanto aquele escudo de beleza
estivesse em torno dele, como um super-herói dos quadrinhos, nenhum mal poderia
lhe acontecer. Não precisava ter medo de nada
Ele abriu os olhos e sentiu três coisas ao
mesmo tempo. A primeira foi a dureza do chão, nas costas, sob o colchonete –
mas essa foi uma percepção mínima, que desapareceu em um segundo. A segunda foi
o som, a música que entrava pela janela, que devia estar tocando em algum rádio
da vizinhança. E a terceira foi um sentimento avassalador de liberdade, que o
invadiu e tomou tudo, sobrepujando os dois primeiros, ou compondo talvez com
eles uma trilogia que marcaria sua nova vida.
A música que estava tocando a toda altura era
“Camarillo brillo”, de Frank Zappa.
E não era só ele o prepotente. Ali, ninguém
tinha medo de nada.
Era como ser impulsionado de uma região
lodosa, escura, e romper a superfície do mar, recebendo o sol na cara, em
cheio. Era estranho. Era um susto respirar assim, de repente. Mas era bom.
Quando o show começou, foi um alívio, o ar
sobre a mesa estava espesso, o homem sentia que seus gestos eram lentos,
presos.
Anos depois, quando tentasse recordar aquela
noite, ela lhe voltaria em névoa, como o começo daqueles filmes dos anos 60
baseados em contos de Edgar Allan Poe. De tudo, ficaria principalmente um
sentimento de humilhação.
Não gostava de dançar. Aos quinze anos, sabia
muitas coisas, lia bem em inglês e francês, entendia tudo de cinema, música,
literatura. Depois da morte da irmã, tornado filho único, tinha tudo o que
queria. Só não sabia dançar. Em geral, não ligava, mas naquela noite se
lamentava por isso.
Havia qualquer coisa de hipnótico ali, uma
força que o atraia para baixo, para dentro ou para longe, talvez. O torpor.
Viu as plantações a sua volta com muita
nitidez, com uma clareza incomum. Enxergava longe e largo. Entendeu, de
imediato, que a sensação de novidade que sentira na subida não vinha da
paisagem, mas de dentro de si.
O filme começou. Na penumbra, a mulher fitava
o homem com o canto do olho, entre uma cena e outra. Via os caminhos que a
fumaça do cigarro traçava no ar. Eram caminhos tortuosos, incertos. Ele
segurava o pequeno cilindro branco entre os dedos, depois de acender com o
isqueiro de metal prateado, cuja tampa se abria para o lado, com um estalo.
Havia em todos os gestos dele uma elegância, fruto da intimidade de muitas
décadas. Não conseguia imaginá-lo sem um cigarro entre os dedos. Mas ambos
sabiam que aquele seria um dos últimos.
Sabe que, por um momento, cheguei a pensar
que... É incrível! Nunca vi nada igual!
Afinal, não fora assim que acontecera com ela
própria, desde o princípio?
Sentia-se leve – e imensamente feliz.
Os dois apenas se olharam – e sorriram. Eles
sabiam. A salvação estava no sorriso.
Olhou-a nos olhos, sorriu. E se beijaram. Um
beijo longo, molhado, de carnes que se fundiram, como se as línguas fossem um
prenúncio da posse, do ato de amor.
E nesse instante a mulher entendeu que
estavam dentro de um sonho.
Os olhinhos azuis se moviam, nervosos, por
trás dos vidros redondos. Peixes assustados. E a mulher começou a pensar nos
guppies.
É um pouco mais, que os olhos não conseguem
perceber. Paulinho da Viola. O samba falava da Mangueira, mas era como se
descrevesse a fé, essa coisa misteriosa e bela que algumas pessoas têm dentro
de si.
Estavam nessa contemplação muda, ambos admirados,
– sem medo algum –, quando um deslocamento de ar, explodindo acima de suas
cabeças, os fez abaixarem, o coração aos pulos.
Dali de cima, a cidade respirava. Havia mais
luz, também. O céu cinzento abrira uma fissura junto ao horizonte, sobre os
telhados, deixando passar uns raios de sol, e a luz dourada se espichou através
do balaústre, listrando o chão de pedra do patamar onde se encontravam.
No meio do caminho, ela tropeçou, caiu,
levantou-se, uma dor fina se espraiando pela perna inteira.
Pois é: fui para o hospital nos braços dos
foliões.
Falara brincando, mas ele riu, dizendo que
era isso mesmo.
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