quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

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8 (o símbolo está deitado)

    
A escritora Heloisa Seixas nasceu no Rio, onde mora. É autora de mais de dez livros de ficção, entre romances e volumes de contos, tendo sido por três vezes finalista do Prêmio Jabuti. Heloisa também escreveu um livro de não-ficção sobre o mal de Alzheimer de sua mãe, O Lugar Escuro (Objetiva, 2007), que depois adaptou para o teatro. É casada com o escritor Ruy Castro e tem, de um casamento anterior, uma filha, Julia Romeu, tradutora e autora teatral.
   
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Heloisa Seixas chama de quase romance a sua obra O Oitavo Selo, publicada pela Cosac Naify no ano de 2014. O livro discorre sobre algumas ocorrências marcantes na vida do também escritor Ruy Castro, com o qual Heloisa está casada há mais de 20 anos. Logo, são eventos de enorme significado para a própria autora, descritos com grande vigor e sensibilidade, capturando o interesse do leitor do início ao fim, como se também ele (o leitor) estivesse presente – compartilhando com Heloisa e Ruy dos acontecimentos narrados.
   
Inicialmente, uma questão a ser levantada diz respeito ao fato da autora considerar esta sua obra um quase romance. Isso remete aos limites tênues estabelecidos entre aquilo que denominamos história ou estória. Estas são fronteiras fluidas, dependendo de diferentes abordagens interpretativas. No seu sentido estrito, um quase romance é, sem dúvida, estória. Porém, numa compreensão mais inclusiva – aquela que leva em conta não apenas os acontecimentos pura e simplesmente, agregando a estes também as sensações e as percepções desencadeadas no sujeito – um quase romance pode ser mesmo entendido como a própria história.
   
Neste breve texto, saindo pela tangente das especulações acerca do que seria um quase romance, assume-se que O Oitavo Selo é uma x-stória, deixando assim, abertas, ambas as possibilidades: hi-stória ou e-stória. Cada um que interprete a narrativa como bem entender. E fica aqui a minha forte recomendação de que Você leia O Oitavo Selo, por se tratar, de uma obra interessantíssima e carregada de humanidade.
   
Finalmente, outra questão diz respeito ao título escolhido para este breve texto. Ora, se o número oito está deitado então, quando ele estiver de pé, será outra coisa, diferente dele mesmo. E, assim como um símbolo dentro de outro símbolo, este breve texto nada mais é que uma x-stória extraída de outra x-stória. Uma impressão pessoal sucinta de O Oitavo Selo, tendo como matéria-prima frases retiradas do próprio livro.
   
Vale enfatizar, portanto, que a primeira e a terceira partes deste texto não são de minha autoria. Mas essa já é outra x-stória.
   
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E sabia que, enquanto aquele escudo de beleza estivesse em torno dele, como um super-herói dos quadrinhos, nenhum mal poderia lhe acontecer. Não precisava ter medo de nada
   
Ele abriu os olhos e sentiu três coisas ao mesmo tempo. A primeira foi a dureza do chão, nas costas, sob o colchonete – mas essa foi uma percepção mínima, que desapareceu em um segundo. A segunda foi o som, a música que entrava pela janela, que devia estar tocando em algum rádio da vizinhança. E a terceira foi um sentimento avassalador de liberdade, que o invadiu e tomou tudo, sobrepujando os dois primeiros, ou compondo talvez com eles uma trilogia que marcaria sua nova vida.
   
A música que estava tocando a toda altura era “Camarillo brillo”, de Frank Zappa.
   
E não era só ele o prepotente. Ali, ninguém tinha medo de nada.
   
Era como ser impulsionado de uma região lodosa, escura, e romper a superfície do mar, recebendo o sol na cara, em cheio. Era estranho. Era um susto respirar assim, de repente. Mas era bom.
   
Quando o show começou, foi um alívio, o ar sobre a mesa estava espesso, o homem sentia que seus gestos eram lentos, presos.
   
Anos depois, quando tentasse recordar aquela noite, ela lhe voltaria em névoa, como o começo daqueles filmes dos anos 60 baseados em contos de Edgar Allan Poe. De tudo, ficaria principalmente um sentimento de humilhação.
   
Não gostava de dançar. Aos quinze anos, sabia muitas coisas, lia bem em inglês e francês, entendia tudo de cinema, música, literatura. Depois da morte da irmã, tornado filho único, tinha tudo o que queria. Só não sabia dançar. Em geral, não ligava, mas naquela noite se lamentava por isso.
   
Havia qualquer coisa de hipnótico ali, uma força que o atraia para baixo, para dentro ou para longe, talvez. O torpor.
   
Viu as plantações a sua volta com muita nitidez, com uma clareza incomum. Enxergava longe e largo. Entendeu, de imediato, que a sensação de novidade que sentira na subida não vinha da paisagem, mas de dentro de si.
   
O filme começou. Na penumbra, a mulher fitava o homem com o canto do olho, entre uma cena e outra. Via os caminhos que a fumaça do cigarro traçava no ar. Eram caminhos tortuosos, incertos. Ele segurava o pequeno cilindro branco entre os dedos, depois de acender com o isqueiro de metal prateado, cuja tampa se abria para o lado, com um estalo. Havia em todos os gestos dele uma elegância, fruto da intimidade de muitas décadas. Não conseguia imaginá-lo sem um cigarro entre os dedos. Mas ambos sabiam que aquele seria um dos últimos.
   
Sabe que, por um momento, cheguei a pensar que... É incrível! Nunca vi nada igual!
   
Afinal, não fora assim que acontecera com ela própria, desde o princípio?
   
Sentia-se leve – e imensamente feliz.
   
Os dois apenas se olharam – e sorriram. Eles sabiam. A salvação estava no sorriso.
   
Olhou-a nos olhos, sorriu. E se beijaram. Um beijo longo, molhado, de carnes que se fundiram, como se as línguas fossem um prenúncio da posse, do ato de amor.
   
E nesse instante a mulher entendeu que estavam dentro de um sonho.
   
Os olhinhos azuis se moviam, nervosos, por trás dos vidros redondos. Peixes assustados. E a mulher começou a pensar nos guppies.
   
É um pouco mais, que os olhos não conseguem perceber. Paulinho da Viola. O samba falava da Mangueira, mas era como se descrevesse a fé, essa coisa misteriosa e bela que algumas pessoas têm dentro de si.
   
Estavam nessa contemplação muda, ambos admirados, – sem medo algum –, quando um deslocamento de ar, explodindo acima de suas cabeças, os fez abaixarem, o coração aos pulos.
   
Dali de cima, a cidade respirava. Havia mais luz, também. O céu cinzento abrira uma fissura junto ao horizonte, sobre os telhados, deixando passar uns raios de sol, e a luz dourada se espichou através do balaústre, listrando o chão de pedra do patamar onde se encontravam.
   
No meio do caminho, ela tropeçou, caiu, levantou-se, uma dor fina se espraiando pela perna inteira.
   
Pois é: fui para o hospital nos braços dos foliões.
   
Falara brincando, mas ele riu, dizendo que era isso mesmo.
   
   

    

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