sexta-feira, 22 de abril de 2016

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ENTREVISTA COM A POETA CARLA CARBATTI

Por Antom F. Adam

Carla Carbatti é natural de Três Pontas (MG), reside em Compostela, é doutoranda em Estudos da Literatura e da Cultura, ou como ela própria define, faz um mapa das heterotopias de Clarice, tem poemas publicados na revista Zunái, Germina, Alagunas, etc., nas páginas Mallarmagens, Escritoras Suicidas, etc., na Antologia RevelO 5 anos, no ESCRIPTONITA: pop-esia, mitologia-remix& super-heróis de gibi, a poeta acaba de lançar seu primeiro livro batizado de na cadência do caos, no dia 22 de Março, na biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo.


Carla, por que levou tanto tempo para publicar um livro?
Durante muito tempo eu achava que só os grandes e as grandes escritoras publicavam. Os formatos digitais me abriram outros portais para pensar a questão da publicação. Foi a partir dessa experiência que vi que @s médi@s, @s pequen@s, @s pequeníssim@s, @s menores ainda, também publicam. E não estou de maneira alguma avaliando qualidade, mas oportunidades (mas, é certo, que há também oportunismos).  Diante disso, comecei a considerar a possibilidade de publicar. Quando veio o convite, eu já tinha um sim engatado.

É a carência de precisão das palavras que incita a sua escrita?
Não, são suas conexões e deslizamentos, não porque eu queira precisá-las, ao contrário, quero conservar suas indeterminações, seus tremores, brechas e fluxos...

É possível viver sem os rastros-registros de uma biografia?
Gostaria, se me permite, conduzir sua pergunta ao campo da escrita, ou seja, tentarei, num primeiro momento, responder à pergunta: é possível escrever sem os rastros-registros de uma biografia? Assim, o que te digo é que os poemas, ou as partituras, as coreografias, intensidades e latejos que compõem este livro foram compostos em períodos muitos distintos, ao longo de anos. Ainda que, evidentemente, há algo de biográfico, o esforço é para que essa biografia se faça em sentido etimológico, como escrita da vida, que partindo de algo singular: a minha vida, ecoe como uma vida qualquer, simplesmente vida. Porque como lindamente disse Deleuze: a literatura só começa quando nasce em nós uma terceira pessoa que nos tira o poder de dizer eu, que nos faz atingir às potências dos devires. Talvez quando “a vida se me é, e eu não entendo o que digo.” Na vida, suspeito, o movimento é o mesmo, interessa mais os mapas afetivos, matéricos, estéticos, políticos, etc. que vamos compondo e que configuram uma paisagem movediça, sem um centro significante, fundador que chamamos de eu, simplesmente uma intensidade, uma tremulação em meio às infinitas potências vitais.

Chama atenção na sua obra a ideia de movimento repetida e ressignificada por meio de imagens líquidas. O concreto das coisas está encoberto pelo real?
Eu desconfio que o movimento é o que há no mundo. Penso que desse modo podemos pensar a multiplicidade e os devires. Se vamos à etimologia da palavra concreto: do latim concretus, particípio passado de concrescere, “crescer em conjunto, aumentar por processo de agregação”, formada por com-, “junto”, mais crescere, “aumentar, crescer”, vemos que há uma conjunção entre o múltiplo (crescer em conjunto, aumentar por processo de agregação) e o um devir (aumentar, crescer). Por outro lado, devemos lembrar que a palavra realidade vem dos teólogos para designar a Deus. O verbo que corresponde a esse termo é existir, logo podemos dizer que a realidade é o que existe. De acordo com filósofo, poeta e dramaturgo espanhol Agustín García Calvo, empregamos existir, e, portanto realidade, para nos referir ao que há, e ao mesmo tempo é. Mas, no que se refere ao que é, precisamos contar com o nome, por exemplo, para que existam vacas e nuvens, não basta que haja vacas e nuvens, mas que se creia que elas são. São necessárias as palavras vacas e nuvens para assegurar isso. A este casamento entre o que há e o que é, Augustín chama de realidade, real. Agora, veja bem, Fernando, que interessante e potente seu argumento. Para ele o ataque á realidade só pode se dar fora da realidade, ou seja, de algo que não existe, porque o que existe está condenado a defender sua realidade. Algo que não existe tem sentido simplesmente pela descoberta de que a realidade não é tudo o que há. Há por todos os cantos coisas que há, mas que não existem, não pertencem à realidade. Por exemplo, diz ele, o que se refere à palavra povo. Geralmente a confundimos com um povoado de um Estado, ou qualquer aglomerado de pessoas, mas povo de verdade não existe. Povo de verdade escapa a tudo isso, é, portanto, desde onde se pode desmentir a fé na realidade, sua falta de fundamento. Penso que poderíamos aplicar a mesma lógica á poesia. Podemos dizer que determinado texto é poesia, até que determinada coisa é poesia, mas a poesia mesmo abriga uma dimensão incapturável. De onde seu caráter revolucionário e criador.

sabe que não se chega ao coração das coisas/ nem com a falsa precisão da linguagem. Quando a escrita nega a palavra como fim de um trânsito em busca do sentido e tenta transcrever o silêncio é aí que nasce a poesia?
O verso inteiro seria: nem com a falsa precisão da linguagem científica, minha arma ia apontada para aqueles e aquelas que têm alguma Verdade a revelar. É certo que há uma negação da linguagem, mas de certo tipo de linguagem (as que buscam a origem, a essência). Todo o na cadência do caos é um canto à superfície, lugar de encontros, estranhamentos, desconhecimento. Porque há escritas que, é certo, não chegam ao coração das coisas, mas as colocam para dançar. O ritmo disso é possível que seja o silêncio...

minhas moléculas tropicais/ no cárcere do frio. Estar estrangeira é mais do que uma questão de território no que diz respeito a sua poesia?
Sim, sim, tem um verso do Caetano que gosto muito: e eu, menos estrangeiro no lugar que no momento. Acho que muitos poemas nascem desses momentos de estrangeirismo. Na minha poesia, a questão de território deve ser expandida para uma questão de espacialidade (tempo-lugar). O primeiro espaço que me faz estrangeira é a língua (talvez por isso os diálogos entre as dúvidas apresentam uma espécie de gaguejo linguístico, sobretudo, em espanhol). O Mar me “estrangeiriza” por completo. Mas, veja, “estrangeirizar” aqui é algo muito profícuo, é como se fosse uma dança com o desconhecido, aquilo que nos retira da zona de conforto. Diante do mar tudo é desafio e desafiante. Também a dança (metáfora para o movimento, o devir) é uma força que nos convoca ao estranhamento (do corpo, do espaço, do tempo, etc.), bem como uma zona de contato: dançar é, entre outras coisas, entrar no ritmo de algo, de alguém. Essa experiência com @ outr@ gera interrogações, titubeia certezas

A numeração das páginas do seu livro inicia-se pelos números negativos terminando com os positivos, este é também o movimento que impulsiona a sua criação-forma de estar no mundo?
Ah não, não, decididamente não, parece-me mais ajeitado um devir menor, um devir imperceptível, ir a menos, rumo ao pior, como diria Beckett ou uma despersonalização clariciana. Entretanto, isso tudo é muito positivo, é se despojar, minorar certas marcas, certos signos, certas significações para criar passagens de vida para a escrita. Mas, a intenção da numeração era reproduzir a linha do infinito, para dizer que o texto, portanto, é um fragmento mínimo daquilo que me sobrepassa...

Quando foi que ouviu/sentiu pela primeira vez a cadência do caos?
O caos (no sentido que eu uso aqui, de força criadora) sempre foi urgente em mim, mas a locução, cadência do caos, é mais exigente, necessita tempo, aprimoramento para canalizar - canalizar não, que não queremos limitar nada - para cadenciar essa força; vou passar a vida tentando...
                                                                                                                     
As epígrafes com palavras de Deleuze e Clarice Lispector dialogam de maneira mais profunda com a obra. Como se dá este diálogo entre vocês?
Estou tentando escrever uma tese para dar conta dessa pergunta, meu caro! Eu só acrescento que Clarice e Deleuze são meus traidores mais amados. Ambos, na literatura e na filosofia, respectivamente, traíram as forças repressivas e codificantes e nos ofertaram um universo demoníaco. E antes que alguém me maldiga, eu me explico com Deleuze, que diz que a diferença entre os deuses e os demônios é que aqueles têm atributos, propriedades, funções fixas, territórios, estão associados aos sulcos, as lindes, os cadastros; enquanto esses saltam os intervalos, desterritorializam, experimentam, criam linhas de fuga. na cadência do caos também aspira ser uma traição. “A experimentadora é uma traidora.”

Há uma partitura oculta para adentrar na cadência do caos: Caos- estrela- dançarina. Como lê-la. Qual é o instrumento mais indicado para executá-la?
Sim, de fato há uma partitura (e como eu gosto dessa palavra), mas eu não diria que seja oculta, acho, inclusive que é muito explícita. Explico-me, o livro gira em torno de uma citação de Nietzsche: “é preciso ter caos dentro de si para poder dar à luz uma estrela dançarina”, por extensão, está dividido em três capítulos que ganham os nomes das palavras destacadas. Um livro pode ser lido de várias maneiras, evidentemente, mas a ideia que quis explorar era a de caos como potência criadora, uma força informe de onde buscamos a energia para criar. A estrela como as vibrações do desejo. Mas para que nasça algo é preciso, digamos assim, um ritmo. Poderíamos falar em dar uma forma, porém não acredito que a arte dê forma a algo, e sim que capta forças (caóticas) e as fazem legíveis, visíveis, audíveis, ou seja, cria uma sensação, uma cadência, de onde a dançarina.

Como é estar presa em um só corpo e sentir ser todo mundo?
Essa é para mim a pergunta mais querida do nosso bate-papo. Porque, segundo meu entender, há nela uma ideia de empatia cósmica que agrada imenso. Mas, tem uma palavra que me incomoda: presa. Vejo algo da metafísica platônica (nomeadamente sua caverna) habitando esse lugar que não está incluído no meu mapa vital-afetivo. Não me sinto presa, ao contrário, penso que nos human@s somos uma potente máquina de sensibilidade, portanto de dilatação e compartilhamentos. Temos células-espelho, pele, mãos, braços, olhos, sexo, boca, língua e uma escada em caracol para subir até as estrelas: poesia. No entanto, que pouco podemos sobre nós, sobre o mundo! Nossa finitude, nossos limites! Por isso, parece-me impossível pronuncia algo como “eu” sem que ressoe ao mesmo tempo um nós: sou mais feita de nós. de dez dedos de digitais cruzadas em carícias, em aperto de mãos, em adeuses. Ou melhor ainda, como disse Merleau-Ponty: no meu inacabamento descubro a potência desse mundo ...





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