quinta-feira, 21 de abril de 2016

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Pequenas histórias 214


Sentia-se


Sentia-se em outro mundo. Estava em outro lugar. Parecia viver outra vida. Estar no centro da história, imprimia uma sensação de falsidade. Não pisava na larga calçada nova da Avenida, tinha noção de que pisava em papel, em letras que iam se formando, letras que se transformavam em coisas, objetos, sentimentos, ideias e movimentos.
Letras que o autor escrevia compondo a mísera história de um medíocre cidadão a perambular a esmo na grande Avenida falsa de humanidade. Medíocre cidadão que, dispondo de tempo, passou pelas bancas de jornal e revista na intenção de encher os minutos que lhe faltava antes de se tornar mais uma vez prisioneiro, no qual por oito horas diárias, ostentaria a coleira de identificação.
Angustiava-se por ver-se fora do contexto. Tinha consciência de que seu lugar não era onde estava. Não se incomodava se davam ou não atenção a ele e, muito menos, com os cumprimentos do dia-a-dia.  
Não era ele que andava na manhã de sol de verão em pleno inverno. Não era ele, era outro que descera do ônibus e se encaminhava para o escritório.
A sensação que lhe dava, que ele era papel, flutuava ao invés de andar, não tinha contato com o cimento frio da calçada cinzenta, precisava dobrar o corpo um pouco para frente, para que as letras não saíssem dele e se perdessem entre outras que por ali voavam.
O que dificultava um pouco, pois as pessoas não tinham sensibilidade em ver o cuidado que ele fazia para não perder nenhuma letra. Às vezes uma ou outra desgrudava e, se não fosse ligeiro, teria já perdido muitas.
A individualidade do povo chegava a ser constrangedor. Até egoisticamente preocupante. No entanto ele não queria saber, o que lhe importava era chegar logo ao escritório com todas as letras. Faltavam poucos passos para entrar no prédio.
Ao virar a quina do prédio bancário foi tomado de supetão por uma forte rajada de vento. Desprevenido, foi forçado a abrir a guarda, seus braços se alargaram um para a direita e o outro para esquerda, fazendo que com isso, deixassem as letras a descoberto.
Não houve tempo de fechar os braços novamente, e nem pode, o vento levava seu frágil corpo como uma folha de papel é jogada quando dela não se precisa mais.
Ele voou, e sendo arrastado, viu as letras se esparramando por entre os transeuntes. Alguns, homens ou mulheres, principalmente mulheres conseguiam pegar uma ou outra letra, mesmo que já tivessem. Guardavam para uma ocasião precisarem, no caso de perderem, para substituição.
Num pequeno momento, ele teve consciência em agarrar a letra M de uma mulher que passava despreocupada. Percebendo o intento, a mulher segurou firme a letra, deu um safanão livrando-se dele.
Levado pelo vento foi parar nos galhos de uma árvore furando-o todo. Logo em seguida desvencilhando dos galhos, ficou preso nos fios de eletricidade. Por infelicidade, por causa dos fios descascados, pegou fogo sendo logo queimado.
Suas cinzas foram cair bem em cima de um táxi branco. No mesmo instante que o dono do táxi limpava as cinzas, surgiu do nada um bando de moleques perguntando se não tinha caído por ali uma pipa. O motorista, enquanto limpava as cinzas caídas no carro, sorriu levemente e disse, lembrando sua infância:
- Não, por aqui não caiu nenhuma pipa.
Passou mais uma vez o pano no teto e satisfeito sorriu ao ver que não havia mais nenhuma mancha de papel queimado.


pastorelli

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