quinta-feira, 21 de abril de 2016

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Os compatibilizadores: Crónicas de Narcisópolis



Já vos falei daquele amigo de que não gostava, o Fernando Guerra? Era-me francamente aborrecido. Nos primeiros tempos ainda o conseguia suportar, mas depois era um suplício.

Morava num dos vértices do Quadrilátero. Era assim que chamava à Cidade: um enorme quadrado plantado a meio de uma malha urbana antiquíssima. Em cada uma das esquinas assim definidas havia um largo. O meu apartamento dava para um desses largos. Como podem imaginar, para o lado interior espraiava-se a malha urbana normativa e para o seu exterior…ficava o desconhecido.

O largo por onde costumava passar estava cheio de gente esquisita: pessoas que não usavam óculos nem acreditavam na primazia da informática na relação entre os humanos. Jogavam estranhos e complicados jogos manuais como o dominó ou cartas (penso que existem diversos cambiantes dentro desta opção). Normalmente, tentava passar o mais depressa possível por eles… não me confundir com o seu estilo de vida anormal e ostracizado.

Naquele dia, porém, o Fernando estava no outro extremo do largo, como se à minha espera. Fiquei paralisado. Não tinha escapatória. Foi então que me lembrei de me confundir no meio daquela mole de gente para a qual nunca quis olhar. À volta dos jogadores de dominó, distribuía-se um conjunto de mirones que oferecia o abrigo perfeito.

Pus-me também a observar aquelas estranhas práticas. O Fernando nunca mais desistia de me apanhar, por isso comecei a entrar em conversas e a interessar-me pelas regras do jogo. Tive imensas saudades do meu computador que me explica tudo rapidamente. De qualquer modo, quando o caminho finalmente ficou livre preparei-me para sair. Foi então que alguém me abordou, assegurando ser a minha vez de jogar.

Não estava habituado a ser coagido de forma alguma. Sempre que sentia alguma pressão, qualquer coisa que me constrangesse de alguma forma, existiam sempre programas informáticos para me ajudarem a resolver as questões. Aos poucos, desabituei-me completamente de ter de resolver problemas interpessoais. O que não estava a contar encontrar-me no meio de tanta gente ignorante de todas as boas maneiras correspondentes à boa educação informática. Desconfio que muitos deles nunca utilizaram um computador até hoje.

Por esses motivos e por não me saber defender, vi-me metido na embrulhada do jogo. As pessoas em torno da mesa, riam-se suspeitosamente. Dir-se-ia que passou a existir um ambiente competitivo.
Não sei como regressei a casa. Estava estremunhado e ébrio. Os meus colegas de jogo insistiram que bebesse uma estranha bebida que me fez sentir eufórico. Andei perdido pelas ruas, quando regressei a casa o computador repreendeu-me: o meu comportamento estava completamente fora das rotinas habituais, fui brindado com uma Anomalia Estatística – algo que me vai fazer baixar score dos perfis dos habitantes da cidade por largos meses.
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Os compatibilizadores: Crónicas de Narcisópolis
Rui Tinoco

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