domingo, 25 de fevereiro de 2018

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ALBA - JANDIRA ZANCHI

Ilustração: Bruno Lopes
  A hora de pagar a conta fora a mais constrangedora. Ela que pagava, é claro. O motelzinho no centro da cidade não era ruim, limpo, bem cuidado. Mais fácil de entrar com ele, achava mais seguro, no carro sempre poderiam ser vistos. Nunca gritara tanto, fizera tamanho escândalo que mesmo dele se constrangia. Olhou-a com um meio sorriso, é, não precisava comentários. O leve balançar de cabeça, a forma de abotoar as calças e puxar o zíper, em tudo estava uma expressão de dono. O sorriso, discreto, trocado com o rapaz da recepção confirmou o vexame. Não que ali não fosse lugar para isso, mas, exagerara. O problema, enfim, era, porque.

      Não pensava como eles. Tinha 38 anos, marido médico, loja, duas filhas, apartamento bem montado, casa de praia, amigos, vida social, acesso. Ele não tinha nada. Quase a mesma idade, charme, liberdade, empáfia, manipulação e sexualidade. Valores reais.... que não valiam. Portanto ela tinha tudo. A seu ver nenhum dos dois tinha nada, porque tudo era perecível. Viciada em literatura, era pernóstica, gostava de discursar em ocasiões sociais, algumas vezes encontrava parceria, em outras, olhos apertados, não gostavam dela. Deviam achá-la frígida, pouco afeita ao sexo, incapaz de trair o marido.

       Muito se enganavam. Ele não era o primeiro, mas talvez fosse o último. Se apaixonava, percebia isso. Aquele excesso de entrega ia varrendo toda a poeira daquela vida de nobres confinamentos, boas maneiras, asserção na mente, bom senso no cotidiano, presença tranquila em eventos sociais e familiares, sempre aquele nariz empinado, um ar de superioridade discreto, mas exercido do jantar bem preparado até o cuidado nos objetos da loja de decoração, viagens e bons contatos garantiam a qualidade, até os livros, que lia, os filmes, os programas culturais, enfim, ela era chata, reconhecia isso. Achava que as pessoas, cercada de burgueses mais ou menos ricos, de níveis culturais e visões ideológicas diferentes, mereciam isso. Eram pequenas desfeitas, uma moderada tirania, um indicar de corretas valorações. Para irritar e se afirmar um pouco mais se cercava de estudantes, literatos, artistas, gente de muito papo e pouco dinheiro, fazendo reuniões mistas em torno de um bom vinho. Claro, que para os amigos do marido, mais sofisticação, aquela coisa clean dos que poderiam pagar o excesso. Mas, enfim, era um modelo de mulher, cabeça, elegância, bom senso, cultura.

          As amigas mais íntimas sabiam dos amantes e, porque não, os tinham bem mais do que ela. Casadas com empresários e profissionais liberais bem sucedidos eram lojistas, psicólogas, professoras ou apenas donas de casa, as mais ricas, acompanhantes de luxo, ela pensava. Algumas, em geral mais jovens, esposas fiéis, preocupadas com a forma, o bom andamento do serviço doméstico, algumas vezes carreira e filhos. Em algum momento, quase todas teriam um outro homem. Geralmente quando percebiam que o marido já tinha traído a algum tempo. Aconteciam separações, atritos, desgastes inúteis. Ela e o marido não, calavam-se. Ficavam cada vez mais distantes, envolvidos em suas rotinas, amigos de outros e menos um do outro, um sexo ocasional, prazeroso, mas, morno, cotidiano. Parceiros de vida.

         Seus amantes quase sempre eram mais jovens ou mais pobres ou mais artistas ou mais rebeldes. Menos que ela e mais do que o marido em uma somatória não muito explícita. Era uma área de liberdade. Ficava algum tempo com eles, deixando a paixão e o encantamento se desgastarem. E se desgastavam. Como conseguia levar a vida nesse estreito acerto entre bem e mal, certo e errado, prazer e obrigações? Não saberia dizer, mas procurava sempre agir à maneira masculina. Não eram eles que dominavam o mundo? Não eram exímios alisadores e executores de ego? Não era esse ego que os mantinha a frente da espécie, o peito erguido, a voz sonora, o toque pronto e retinto das ordens, as negações de perdões e justiça? Pois então, ela era uma igual e, sempre que podia, esfregava-lhes na cara a elegância, a cultura, os jovens ou nem tanto rapazes e moças cheios de vida e ideais, para lembrar, bem nitidamente, que sucesso profissional não se compatibiliza sempre com sucesso humano. Que a guerra e o desmembramento da espécie não eram aparentes. E, afinal, por que não se dedicara à filosofia ou antropologia ou sociologia? O que fazia ali, aquela chata, em meio aos bem sucedidos, aos donos dos templos? Todo lugar precisava de saber e a vida a encaminhara assim.o tédio e o desejo lhe empurravam em direção a esses homens. Qual o problema?

        O problema, ela que gostava tanto de destacar, alisar as contradições... nenhum equilíbrio se manteria, já tinha lido sobre entropia, entendia mais ou menos, sabia que toda boa execução traz em si mesma a fórmula de seu desarranjo. Claro, morte, velhice, doenças. Ninguém mencionava o prazer, a necessidade do prazer. A impossibilidade ou, pelo menos, a dificuldade de manutenção, daquele frio equilíbrio de felicidade e boas maneiras, aquele arranjo que um homem e uma mulher faziam para criar filhos, ter carreiras bem sucedidas, continuar o elo de bonança e estabilidade. O prazer, esse tirano, exigia, sempre, suas mesuras. Ele gritava, em uma mulher, urrava. E por isso as mulheres foram amarradas, caladas, assassinadas, quando não esmagadas por homens impotentes, cheios de descaso e incompreensão, inimigos vestidos de maridos, de pais, professores, até de amantes. As mulheres, aquelas que realmente eram aptas a exercer a feminilidade, não conseguiam calar ou aceitar a negação do prazer, viver sem o lúdico, o corredor úmido da inserção no meio, o real, da natureza, dos cheiros, dos rios, do céu, das árvores, da vida, do amor.

         Amor? Amor e prazer? Para os homens, esses egos que mutilavam, construíam sussurravam e amavam máquinas, esses senhores do abstrato e das leis e das guerras e do qualitativo, para eles não existia essa palavra, amor. Amavam, é claro, e afinal existiam os poetas,, os artistas, cuja principal característica era amar e se enlear como mulheres, mas enfim , esses não eram os donos do mundo, ainda silvícolas bem aprumados... O amor para esses, os que chefiavam, eram uma base, um portal, um repouso. O final do dia, o calor e o lar. Não era a essência da batalha, era um outro lugar. Mas, ela era uma mulher. Tinha ovários, seios, adiposidade, sonhos e gostava da vida. E do desejo, do fundo corredor do silêncio na posse, do rio, do ser... então, ela amava ou amaria e gritaria. Rebelde, destruidora... as duas meninas chegavam da natação, louras como o pai, maravilhosas, fluídas, bom coração. O marido, aquele santo, provedor, carinhoso, apoio. Tantos que giravam em torno deles. E ela, essa destruidora, pois amava, amava. Se calasse esse grito, sabia, a vida a calaria. Sabia, sabia. As meninas entenderiam. O marido arranjaria uma mulher mais jovem, mais devota, admiradora daquele sucesso. Os outros, bem os outros, não precisava de falsos amigos, nem daquela coroa tão falsa, tão fugaz. Se enterraria sem ela, com menos plásticas e viagens e grifes e homenagens. Amava e então qualquer outra conclusão ou definição... como ainda era muito a si mesma, as amigas iriam gostar dessa nova teoria, as mulheres foram engessadas, apagadas, atoladas por coisas assim. A lança vertical da evolução exigia silêncios e sacrifícios. O honrado sempre seria o ego. O livre, algumas vezes em submissão, mas, quase sempre ouvindo a voz do grito.


Jandira Zanchi (Egos e Reversos, inédito).

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