sábado, 9 de junho de 2018

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Ó DE CASA!




A labuta acontecia no aconchego do lar, gostava e nem se lembrava mais do tempo em que não era assim. Full-time home-office, desde 1996, no quartinho de empregada promovido a escritório. 

No começo passava por fax os cálculos, análises, avaliações, laudos e relatórios, depois via email, skype, messenger e whatsApp. A cadeira veio da Etna, a mesa da TokStok, o computador do Submarino, o telefone sem fio da Americanas ponto com.

Visto em público pela última vez em novembro daquele remoto 96, quando consultou um médico para examinar umas estranhas brotoejas no pescoço, justificou a saída em seu diário como se fosse uma falta grave a ser redimida.

Pedia as compras de mês pelo Extra Delivery, os remédios pela Ultrafarma, uma faxineira a cada 20 dias pelo diaristaonline. Por se tornar inútil, vendeu o Escort XR3 que tinha com um anúncio no Mercado Livre. 

Uma máquina de cortar cabelo chegou pelo shoptime em meados de 2012, eliminando do rol de despesas mensais fixas o cabeleireiro em domicílio.

Sempre adorou cães, e os adotava vendo suas fotos nos sites das ONGs protetoras de animais.

Ano passado teve um mal súbito cardíaco, muito provavelmente por não ter descoberto a tempo um plano de saúde que incluísse consultas e exames domiciliares.

Foi enterrado no quintal, com todas as honras humanas e caninas, ao lado do Acerola, do Tarzan, da Belinha, do Sunny, da Lililica e do Scooby. Pichuca, a poodle toy que tinha quando se foi, urinou nas flores sobre a sepultura, provavelmente intuindo que assim homenageava o dono.  

Antes da missa de sétimo dia, encomendada por telefone pela esposa e divulgada por post no facebook, chegou um pacote da Amazon com o livro sobre comunicação com os mortos - lido e relido pela viúva na rede da varanda e praticado regularmente na mesa da sala de jantar. 

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Imagem: www.tudopracarro.com.br





PS: Ninguém compareceu à missa de sétimo dia, nem mesmo a esposa. Todos elevaram seus pensamentos e fizeram suas preces de casa mesmo. Como o próprio finado costumava dizer, "o que vale é a intenção".

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