terça-feira, 18 de dezembro de 2018

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Pequenas histórias 306


Pisou nas pastilhas



Pisou nas pastilhas pretas e brancas da calçada. Ergueu os ombros, estufou o peito e, decidido, como prometera a si mesmo, começou a andar em linha reta, sem desviar de quem quer que fosse. Os fracos e incomodados que se desviem era a sua opinião. Consultou o relógio do celular. Sete horas e cinco minutos. Estava muito cedo, resolveu dar uma volta no quarteirão. Não queria chegar antes das oito ao escritório. E para que? Não tinha necessidade. Portanto com passos distanciados, jogando os músculos da perna para frente, sentindo os nervos relaxados, o sangue chacoalhando nas paredes das veias proporcionando liberdade aos movimentos, com as mãos nos bolsos, dirigiu-se para o lado esquerdo.
Passou pela farmácia onde se via um movimento razoável de hipocondríacos consumindo remédios como se estivessem num supermercado consumindo alimentos. Parou em frente à banca. Olhou as revistas, livros, magazines, HQs interessantes estrangeiras, jornais mostrando os últimos crimes da semana. Nada lhe interessou. Ao sair da banca, sem perceber, seu cotovelo bateu nas costas de um rapaz que folheava uma revista. Desculpou-se. Não ouviu o comentário sibilado entre dentes. Continuou a andar sem pensar no incidente.
Despreocupado, com a mente navegando de um ponto ao outro da avenida, ora pousando numa pessoa, ora pousando nos prédios, ou talvez, nos carros indo e vindo, seguia a linha da manhã ensolarada. Como prometera seguia numa linha só, reta, as pessoas que desviassem. Via nisso certa alegria grotesca. Distraídas ou apressadas, quando percebiam, desviavam dele num movimento ágil, às vezes esbarrando um ombro ou o braço. Nisso, não notou o rapaz que em sentido contrário, esbarrou nele tocando de leve as mãos. No mesmo instante se voltou e se desculpou o que fez também o rapaz. Já se preparava para atravessar a avenida quando sentiu tocarem o seu ombro.
- Desculpe, por favor.
- Pois, não.
- Pode me dar uma informação.
- Claro qual é?
- Onde é a Fenac?
- Fenac?
- Sim, a Fenac.
- Bom, ela fica para lá, perto da Brigadeiro.
- Estamos longe?
- Não muito.
- Você vai para lá?
- Não.
- Para onde você vai?
- Para o trabalho.
- Ah, sim.
- Além do que está cedo para Fenac abrir.
- Eu sei.
- Você sabe é?
- Sei. É que fiquei interessado em você.
- O que?
- É você me interessou.
- Não entendi.
- Eu explico.
- Vamos ver então.
- Bom o caso é o seguinte. Eu estava na banca quando você deu uma cotovelada nas minhas costas.
- Lembro, mas eu me desculpei.
- Sim, se desculpou. Acontece que eu entendi como algo além de uma desculpa me entende?
- Não, não entendo.
- Bom, segui você, sem me ver, ultrapassei você e fui ao teu encontro em sentido contrário. Esbarramos-nos, e levemente toquei sua mão, você se virou se desculpando, o que fiz também.
- O que?
- Pensei que você estivesse afim de mim também.
- Espere aí. Não sou o que está pensando.
- Não sei. Se quiser dinheiro posso te pagar.
- Não...
- Posso te arrumar uma menina novinha caso queira.
- Espera. Você está me cantando em troca de dinheiro ou de uma garota?
- Praticamente sim.
- Escuta amigo, desculpe se lhe dei essa impressão. Nem te percebi. Não me leve a mal, mas não sou o que está pensando.
- Então vê se presta atenção quando esbarra em alguém, falou malandro.
- Vou prestar atenção daqui para frente.
Atravessou a avenida rapidamente. Do outro lado olhou para traz. O rapaz ainda estava lá parado observando-o. Nunca mais andou por aquele lado da avenida com medo de encontrar com o rapaz novamente.


Pastorelli

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