sábado, 23 de fevereiro de 2019

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Pequenas histórias 324


Ele notou


Ele notou que ela explodiu. Ouviu até o grito. O peito balançou, não esperava, quer dizer, um dia aconteceria, não é? Não queria ouvir e nem que ela explodisse e, no entanto estava perto dela quando explodiu. Não podia deixar de ouvir. Encheu o peito da camisa de lágrimas. Ensopado de suor emoção lágrimas ficou parado com os braços dela em volta do seu corpo. Nada pode fazer. Bem que queria ter tido tempo suficiente para ajudá-la. Mas... As coisas nunca são como a gente imagina que seja ou como a gente queira que seja. E nesse querer e não ser como queremos, atendeu ao chamado dela. Viera o mais rápido possível. Desviou do transito o mais que pode, cruzou ruas transversais que nunca pensou um dia teria que cruzá-las, avançou semáforos que teimavam a fazê-lo parar, passou por buracos, lombadas para chegar a tempo de ouvir a explosão dela.
E nos últimos momentos, quando ela jogou os braços em volta do seu pescoço, resfolegando palavras extintas e inaudíveis, como filme de Buenel misturado com Saura mais Glauber, num surrealismo desconcertante com pinceladas de Dali, viu todos os momentos em que eles prepararam para que um dia um dos dois explodisse. Infelizmente, ela não resistiu, explodiu primeiro que ele. Só ele sentiu a explosão dela, mais tarde escrevendo em seu diário, mania que pegara depois de ler o diário de Gide, em letras separadamente de sentimentos burocráticos, podia-se ler que nem ela mesma sentiu a sua própria explosão, isto é, só ele que sentiu e a presenciou. Foi quando os braços em torno do pescoço se afrouxaram e ela escorregou para o chão molemente.
O vento em companhia do sol da tarde de verão presenciou aquele momento. Ele com os braços soltos ao longo corpo, e, ela esparramada aos seus pés num amontoado de carnes e roupas parecendo um não sei o que de fútil e obsceno. Assim ficaram, longos minutos, até que os letreiros subiram enquanto a câmara se afastava até que os dois sumiram na grande tela do cinema. As luzes foram acesas. Algumas pessoas femininas disfarçadamente enxugavam os olhos com delicados lenços de sedas com as inicias bordadas num dos lados.


pastorelli

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