Meu pai deixou uma fita cassete para cada filho. Uma Scotch 60, daquelas transparentes, da 3M. Ele cantando, acompanhado do violão, em 1982. Não ouvi, na ocasião. Era redundante: morava com meus pais e meu velho cantava quase todo dia. Guardei, esqueci não sei onde e achei por acaso outro dia.
Deu o que fazer para encontrar um toca-fitas e usufruir do tesouro. Depois de umas três músicas, com a voz trêmula, disse pra mim mesmo:
- Pai, que delícia ouvir você cantando, 41 anos depois...
O canto na fita silenciou. Foi quando meu pai respondeu, lá em 82, quase me matando do coração aqui em 2023:
- Ué, parece que escutei alguém falando alguma coisa. Ô Glória, o Marcelo tá em casa?
E minha mãe, retrucando da cozinha, talvez apurando o molho do rosbife:
- Tá na escola, João.
- Estranho, parece que ouvi a voz dele aqui na fita. E continuou com "À distância", do Roberto Carlos, uma das suas favoritas, que eu ajudei a cifrar o acompanhamento.
"Eu não acredito", disse daqui.
Papai parou a gravação, no meio da música.
- Eita, que é que tá acontecendo? Não acredita no quê? É a voz do Marcelo, tá esquisito esse negócio...
E escutei, em seguida, o barulho de uma tecla do gravador sendo apertada e da fita sendo rebobinada alguns segundos. Ouvi eu mesmo dizendo "Eu não acredito".
Aquilo era loucura, eu só podia estar no meio de um sonho. Tirei a fita do aparelho. Dei umas batidinhas, talvez acordasse daquela alucinação. Coloquei a fita cassete do outro lado. Ele cantava "O destino desfolhou", valsa que aprendeu com minha avó Ana Lúcia quando criança.
Pausei a fita. Chorei como nunca conseguiria naquele distante 82, nos meus 18 anos, quando nada era motivo de nostalgia ou de tristeza. Apaguei a luz para mergulhar melhor naquele momento mágico. O João dava um lá maior para começar "Olhos de Veludo".
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