...Mil perdões, te peço, por não ter conseguido acompanhar teus passos.
De tudo o que havia para além do antes desconhecido, foi isso o que me voltou. Foi só isso o que me voltou à mente, hoje pela manhã, enquanto parei para divagar olhando os quadros das paredes desse cômodo, que todos que juram que me conhecem juram que é o meu quarto. Me deu vontade de escrever alguma coisa que, agora – lápis na mão, apoiado com a ponta sobre a folha branca de papel, traçando letras unidas em sílabas, unidas em palavras, e parágrafos e vírgulas e pontos e escrevendo, escrevendo, escrevendo, e escrevendo a palavra escrevendo – cinco minutos depois, já não sei o que é. Então escrevo isso mesmo: Mil perdões, te peço, por não ter conseguido acompanhar teus passos.
Sabe?, do tempo de antes – do espaço remoto de tempo anterior a tudo, daquilo que um dia foi a minha vida, já que vida é lembrança e não tenho mais vida, daquilo que veio antes do dia em que nasci, porque acordei, olhei as paredes de azulejos brancos e perguntei meu nome – do tempo de antes, enfim, não consigo lembrar muita coisa depois de tudo. Isso se houve mesmo um tempo de antes desse tudo.
Não lembro, por exemplo, como você aconteceu, nem quando. Lembro pouco. Lembro teu rosto e uma voz. Acho que é a sua. E uma música, que não é bem uma música, mas o pedaço de um trecho curto de um acorde de música, que essa voz, talvez a sua, costumava cantar pra mim.
Deixa eu lembrar. Eu quero lembrar. Era mais ou menos assim: I wish. Não tenho certeza. Era: I wish I’d never... Eu quero lembrar.
Só sei com toda a certeza – a certeza que me falta pra dizer meu nome, ou quantos anos eu tenho, ou se essa casa é a minha, se sou homem ou mulher – que, mesmo sem como nem quando, o fato é que você aconteceu. E essa certeza me veio com mais força quando, dias atrás, ouvi por trás do muro que limita o quintal, o muro que limita todo o espaço que me permitem conhecer do mundo, porque a gente dessa casa não me deixa ver o mundo, dizem que têm medo de eu me perder porque não me lembro nem de mim, ouvi por trás do muro uma voz que me lembrou a sua.
A voz cantava, e não era a sua, mas a sua cantava, e não era aquela. E, antes de tudo, você tinha voz e cantava pra mim alguma música que veio antes de tudo. E hoje é tudo, porque não lembro do antes. E se eu não lembro não importa se houve, importa que sem lembrança nada existe. Então tudo nunca existiu.
Mas a voz cantava, e não era a sua. E eu não sabia que havia vozes e descobri que havia música e depois desse dia, em que primeiro ouvi essa voz, que cantava alguma música, essa voz voltou a cantar muitas outras músicas e muitas outras vezes cantou muitas músicas.
E nesse dia, em que primeiro ouvi essa voz, que cantava, como a sua também cantara, eu me aproximei do muro, encostei o ouvido nos tijolos frios, frios porque estavam molhados, molhados porque estava chovendo – e eu lembro pouco, muito pouco, de quem um dia eu fui antes de tudo, e lembro, lembro porque nesse dia eu lembrei, que eu gosto muito mesmo quando chove, que eu sempre gostei muito mesmo quando chovia antes de tudo – e nesse dia era tarde escura e eu pisava descalça na grama do quintal, e gostava, do cheiro de terra molhada eu gostava, e eu tinha saído correndo na chuva ao ouvir a voz, e nem sabia porque corria nem porque a voz nem de quem, mas corri do quarto enquanto me vestia e estava sem blusa na chuva, e gostava, como uma criança que ganha o presente com que sempre sonhou – e eu me lembro agora, depois desse dia, que eu sempre quis um banho de chuva na chuva eterna, nua na chuva eterna, sempre quis, quando eu era criança, como um dia eu devo ter sido, antes de tudo – encostei o ouvido no muro nesse dia, e fiquei me perguntando quem cantava, que não era você, único vestígio e borrão daquilo que veio antes do nascimento e antes do nascimento é morte.
Eu chamaria por Deus se eu me lembrasse dele.
Mas eu só me lembro de você.
E eu me lembrava de você, borrão do antes, enquanto ouvia a voz do agora cantando o que você não cantava antes, porque antes você cantava I wish I’d never. Você cantava I wish. E eu não lembro. E do resto eu não lembro. Mas a voz cantava Faça uma lista de grandes amigos. Depois cantava Hoje eu acordei tão só, mais só do que eu merecia. Depois cantava No one ever told me that love would hurt so much. Depois cantava If I died tomorrow I’d be all right. Depois falava, como se lesse, Tenho um dragão que mora comigo. Mas nada disso é verdade. Só existe o sonho.
E eu ouvia aquela voz. E a voz era quase a sua. E qualquer outro acreditaria que era você do outro lado do muro. Mas só eu, no mundo, só eu era capaz de reconhecer que não era você, porque você tinha sido pedaço de um antes e não poderia jamais ser um agora. Você era Ontem, não Hoje, não Amanhã, nunca Prasempre, sempre Passado, sempre Memória, embora eu não soubesse, e não sei, porque você, nem quem, nem quando, embora eu nunca chegue a saber porque você foi, nem porque não volta, mas foi e não volta.
E a cada sílaba daquela voz, voz tão sua e não sua, era de você, Metade exilada de mim cantava a voz, era de você que eu me lembrava, porque, pouco e mal, você é quase tudo o que me resta do que havia antes de tudo. De tudo o que houve antes de um vestígio de chuva e tarde escura e motor de carro velho que ainda anda e faróis e olhos vidrados na luz forte dos faróis e desespero e terra e mata e escuro e queda e voltas no ar e medo e impacto e cabelo pintado de ruivo e cabelo pintado de sangue e rádio alto numa batida que me lembrava dor e hoje me lembra muita dor, mas antes era dor por dentro, hoje também, mas antes era dor de existir, hoje dor de lembrar da dor de um corpo que não é mais meu, um corpo que tinha mente que tinha lembranças que tinha vocações e futuros e cabelo pintado de ruivo falso e gostos e hoje é lembrança de poses em fotos, mas não é mais meu corpo, cabelo negro cobrindo a fonte de todo o esquecimento. De você eu me lembro e só de você. E, como tudo o que existe em torno, a voz me faz lembrar de você e só de você.
E há cinco minutos atrás, quando eu escrevia “cantava, que não era você, único vestígio e borrão daquilo que veio antes do nascimento e antes do nascimento é morte”, e antes, enquanto eu só olhava os quadros e pensava e tentava te trazer à tona da água escura do meu breu interior pra, talvez, me trazer à tona junto contigo, e antes, quando eu me lembrava “Mil perdões, te peço, por não ter conseguido acompanhar teus passos”, e antes, quando a voz cantava e parava e cantava e calava e voltava a cantar, e só essa frase, “Mil perdões, te peço, por não ter conseguido acompanhar teus passos” – dita por você, ou por mim, ou por um de nós dois, ou por nós dois, ou nenhum, que isso é o que menos importa – me voltava, e antes, e antes, e ontem e antes de ontem e ainda antes, era de você que eu me lembrava. De você e só de você. De você que costumava cantar uma música pra mim.
Então acho que escrevo todas essas sentenças confusas, porque se eu tivesse um gravador, mas não tenho, eu poderia falar, mas não posso, e mesmo que eu tivesse um gravador não poderia falar porque não poderiam ouvir porque acham, a gente dessa casa que diz que me quer bem e que me rouba a vida porque acha que me faz bem, a gente dessa casa que me tranca nessa casa depois de tudo, pelo meu bem, e eu acredito que eles já eram assim mesmo antes de tudo, porque eles acham que você é uma obsessão e que eu tenho que me livrar de você, mas não sabem que se eu me livrar de você eu sumo porque eu só existo em você porque existência é lembrança e você é minha única existência porque é minha única lembrança, acho que escrevo todas essas sentenças confusas na esperança de ordenar o que eu te diria se você estivesse aqui. Então acho que é isso, e talvez seja só isso, e talvez isso não seja apenas só mas muita coisa, ou tudo – tudo o que tenho e em que me agarro pra assimilar o mínimo de personalidade e autoridade sobre esse corpo em que me encontro sem saber dele nem de mim porque só sei de você e do que eu fui só me resta você –, ou talvez não seja nada e sendo nada então será tudo, então acho que é isso: você costumava cantar uma música pra mim.
Essa voz que está cantando agora mesmo, e me lembra a sua mas não é a sua, essa que me chega do outro lado do muro, muito além do mundo que eu conheço hoje – tão pequeno perto daquele que sinto ter conhecido antes de tudo, porque você, me lembro ou acho ou tento, me mostrava muitas coisas e muitos mundos – essa voz canta várias músicas. Perdi a conta de quantas vezes já te escrevi isso, que você não vai ler, que eu vou queimar, rasgar, comer os restos, os retalhos e as cinzas pra não sobrar nada da minha loucura quando eu conseguir, e ainda espero ou quero ou não quero mas preciso, me lembrar de tudo de antes de tudo. Essa voz canta várias músicas. Você cantava uma só. I wish. I wish I’d never. I wish I’d never met.
A voz voltou. A voz é bonita. A sua voz era bonita. Eu acho que eu era bonita. Você era bonito. Eu acho que eu era bonita e você bonito, porque eu amo como mulher. Porque eu vejo uma mulher nas fotos daquela que fui antes de tudo. Mas hoje, sem espelho e sem vidro de janelas, portas e lâminas das poças da chuva, hoje, nas roupas rotas e cinzentas que me dão e no cabelo negro que cortaram até sangrar, hoje já não reconheço nada, nem uma só sílaba da voz que pode ter sido minha, nem um só centímetro da pele que pode ter conhecido alguma luz e alguma cor. E reconheço no teu rosto, I wish, desgastado pela lembrança vaga, I wish I’d never, uma sombra esverdeada ou azulada de barba por fazer, que me arranhava em me tocar, I wish I’d never met, mesmo com o carinho com que aproximavas do meu o teu rosto. Eu amo, I wish I’d never met you, e sei que amo e sei que acreditei num amor vindo de você antes de tudo, se existiu antes e tudo e você e amor. I wish, I wish I’d never met. E das poucas sensações que me lembro ter tido antes de tudo, o amor desesperado é uma delas e o desespero de não saber mais sentir o amor desesperado de antes é o que me toma agora. I. Agora que a voz volta. wish. E grita. I’d never. E canta. met you. E não é a sua. You’ll never come again...
Conto publicado no livro Promessa Vazia (Multifoco, 2011).
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