morre-se nada
quando chega a vez
é só um solavanco
na estrada por onde já não vamos
morre-se tudo
quando não é o justo momento
e não é nunca
esse momento
Mia Couto
Depois da sua morte sinto que foi roubada seriedade à vida. Após isso, tudo é possível. O que mais me intriga e dói na morte, na do meu irmão como na de todos os que amamos, é que nada se perturba com ela na vida normal do mundo – no comércio de viver –, desaparece-se num precipício onde se despedaçam esperanças, horizontes, ousadias, sonhos, e tudo continua como se fosse natural, como se de criaturas fictícias fragmentadas por esquinas e cafés se tratasse, sem deixar rasto.
Com a memória ainda ulcerada desfolho as horas a partir daquela noite deserta, daquelas horas de um passado que não passa, daqueles minutos que se cravam no peito e vincam a nossa pele interior. Desde então, conto o tempo para o desmentir, para regressar a todos os instantes antes desse momento mas a morte continua presente nos relógios.
O meu irmão morreu dia 21 de Setembro de 2010, enquanto as estrelas semeavam a noite. Sinto o sopro nocturno da notícia e desde então, não paro de o reviver. Vivo esse ontem como se fosse o tempo presente. Estou nos lugares que foram dele. Afago os livros de Geologia que eram seus, as pedras que coleccionava, os diplomas que com esforço e sucesso conquistara, os discos de vinil do José Afonso, uma biografia sobre Bruce Lee, o herói da sua adolescência, o livro que o apaixonou muito cedo, "Papillon" de Henri Charrière e todos os símbolos pendurados ao longo das paredes. Através dele também me transporto para a cidade onde nascemos e passámos a nossa infância, aquela cidade de Évora, onde o Inverno era frio e o Verão sem sombra, um tempo vivido devagar. Recordo a sua vida e o seu talento para a bola, o gosto pela música gregoriana mas não suficiente infalível para poupar uma alma inquieta, o seu intelecto e a capacidade de memorização. Recordo o seu ingresso na Faculdade de Ciências de Lisboa e as directas de estudo. Lembro-me que gostava de se perder pelo interior das igrejas vazias da baixa pombalina, maneira que tinha de se proteger da violência das coisas. Recordo os elogios francos que tecia sem cessar ao sobrinho e à minha mulher. Palavras sem regresso, bric-à-brac de lembranças, pois agora a nostalgia é um rio que corre mais rápido.
A sua morte foi terça-feira de uma noite sem fim, uma valsa demorada. Aconteceu depois de uns tempos de um organismo cansado. Uns dias antes, ele parecia mais pacificado no seu sofrimento, mas era uma esperança pálida, uma sombra incerta. De repente, tudo mudou. Houve uma dor maior, um declínio da vitalidade, a suspensão da coragem, um corpo que se veste devagar. Durante anos, foi sendo abatido, atacado, escalavrado, ferido, sovado pela vida. Ainda novo mas a solidão parecia-lhe mais viva que o sangue e sentia-se expirar no exacto momento em que julgava ter deixado de ser útil, doía-lhe a vida que se deitava com ele na cama após longas insónias e cigarros consumidos. Esteve mal, medrou, piorou, melhorou. Foram dias e noites de ansiedade e de espera, de aflição e de mágoa, um vazio sem fundo. Nesse tempo, a minha mãe viveu com ele a fadiga dos consultórios e o éter dos hospitais. A mãe contorcionista que tinha medo de o ver irremediavelmente perdido caminhava com ele de mão dada pelas praias da madrugada, por que para as progenitoras os filhos são uma parte do seu coração, uma parte da sua energia, seu amor primeiro, a sua luz, o seu agasalho, alma diante de alma. Nos últimos tempos mãe e filho viviam colados como a hera ao muro e evidentemente que para elas os filhos são imortais.
Mesmo combalido, ele apercebia-se do nosso cuidado, da nossa insistência, da nossa obsessão, do nosso ar de entendidos em medicina, em arriscada armadilha. Os clínicos admitiam-lhe tudo, mesmo as impaciências, as queixas, as raivas acesas. Eram derrotados pela inteligência, pela insubmissão, pela agitação dele. Quando chegava das consultas estendia-se sobre a cama onde se abandonava a uma alheia introspecção e adormecia devagar num sono químico. Um dia, percebeu que podia acontecer o pior por se sentir o mais vulnerável dos seres, sem abrigo contra o desconhecido. Pouco antes de sentir que a mão da morte lhe pousava no ombro, estava muito doente.
A noite veio de dentro. Em minha casa, o telefone tocou dentro de mim. Acordei com o coração a desancar contra o peito. Ouvi a voz da minha mãe e percebi que estava atravessada pelo carimbo da morte. Universo de pranto. Era noite escura e o mundo dormia, um terror que asfixiava, que mordia, amargura indelével, emoção funda, o choro coagulado nas gargantas. Nós corremos para casa dele, onde a minha mãe praticamente residia e o assistia. Encontrámo-lo morto, caído no chão do quarto, triste espectáculo sem rede alguma. A sua voz calada para sempre, os seus olhos fechados para sempre. A vida interrompida, um abismo último. Sangue do nosso sangue. O corpo só na plenitude das trevas e do silêncio, a sua missão embargada, a sua última viagem. Os homens vão, vêm, andam, rodopiam, e nenhuma informação de morte. Mas, quando ela chega a propósito de um ente querido surpreende-nos imprevistamente e sem defesa, confrontamo-nos com algo de abjecto e ignóbil, uma dor oceânica que agride, o apocalipse de tudo o que amamos. Ele estava inclinado sobre a sua morte, como se sucumbindo à dor que o fulminara subscrevesse os versos de António Feijó (…) É pela tua mão, feito um rasgão na treva, /Que a Alma se liberta, e de esplendor vestida /— Borboleta celeste, ébria de Deus, — se eleva /Para a luz imortal, Luz do Amor, Luz da Vida!
Encosto-me à memória e lembro-o defraudado, teimoso, obsessivo, em atrozes dilemas, às vezes impossível, às vezes a escorrer melancolia, um livro fechado. Lembro-o obstinado, prudente, prevenido, até muito perspicaz. Lembro-o crente, humano, inteiro, íntegro, de uma só palavra, de uma só vontade, mas também com sentido de humor. Lembro-o ansioso, visceral e algumas vezes cansado de sofrer e arredado do princípio da alegria. Lembro-o bom aluno, arguto, adivinho.
Agora, vivo numa ilha sem ele e o sol morre dentro do seu nome. Num tempo entristecido que é o do seu desaparecimento físico, do seu repouso, do seu exílio eterno. Anoitece devagar e olho o retrato dele, o preferido, a imagem de uma adolescência longínqua. Contemplo o seu olhar infinito de cientista e acende-se a lua – e a morte por instantes deixa de ser um enigma ou um fantasma.
Luís Galego
Imagem: "Café da Manhã de Um Homem Cego", de PABLO PICASSO.
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