Autonomia, embora não soubesse o
sentido desta palavra, quando pronunciada em sua presença, era apenas um som
que achava bonito, definia bem o que queria ao encarar a fruteira preenchida
com seu colorido-imã.
As bananas podiam ser desmistificadas
facilmente, sua casca não oferecia muita resistência, todavia, elas pareciam
mais bonitas vestidas de amarelo, mas o gosto de sua nudez compensava o
desacato à vaidade.
As maçãs, estas eram envergonhadas e
por isso muito raramente, tiravam sua roupa, preferiam ser comidas vestidas de
vermelho, às vezes algumas sementes eram engolidas, como se quisessem perpetuar
a sensação de profanação dentro de todos aqueles que ousaram contra a sua
castidade.
Mas as laranjas, estas recatadas não se
mostravam com facilidade, era preciso ajuda de uma faca. Faca: objeto que não é
permitido o manuseio às crianças. Portanto, não se podia deliciar a fruta sozinha,
um adulto deveria estar presente de corpo e desejo de ajudar, o que nem sempre
acontecia.
As sementes dos frutos consumidos, já
tinham dado origem a novos frutos, e ela que enquanto criança era uma espécie
de semente de adulto, começara a germinar. Àquela altura o fascínio das facas a
tornou uma exímia atiradora do laminoso objeto, era uma das principais atrações
do circo.
A casa onde crescera não comportava
mais seus troncos, embora soubesse que suas raízes deveriam ser sacrificadas,
escolheu a vida nômade como membro de uma trupe. Os pais não aprovaram, mas o
que se pode fazer, quando o fruto cai do galho?
Os truques do namorado mágico
passaram a não encantá-la mais, ele nunca conseguiu restabelecer a felicidade
que ela jurava ter sido sua há muito tempo. O flerte com o domador não amansou seu
vazio, que rugia feroz em sua rotina.
O lar itinerante depois de um longo
tempo permitiu seu reencontro com a sua cidade natal, de dentro do trailer
avistou seu lugar-útero, onde nascera e crescera. A comitiva chegara ao seu destino
temporário mais uma vez.
Lonas ao ar, trabalho duro, mas que
aos olhos das crianças da vizinhança, continha a mesma aura mágica dos balões
cheios com o ar, esta coisa invisível capaz de preencher grandes objetos.
Relutou, mas não conseguiu evitar que
seu orgulho fosse derrotado pela saudade. Passos que não precisavam dos olhos
para guiá-los, sabiam o caminho de cor e salteado, a mão tão precisa em seu
oficio parecia titubear ao tocar campainha: Um leve toque...
A porta pareceu estar mais lenta em
seu abrir, a mãe a mirou, ainda dentro do domicílio, descrente dos seus olhos
que não eram mais tão eficientes, e mesmo com a ajuda dos óculos fraquejavam
diante do que estava a sua frente, vacilante, ainda do lado de fora, ela
abaixou, rapidamente, a cabeça, mas os olhos eram imãs e não podiam evitar o
reencontro. As palavras tinham desaparecido, um forte abraço estabelecia a
comunicação entre elas.
Sentado numa cadeira de rodas, no
interior da sala, o pai com sequelas de um a.v.c., não podia falar mais e muito
menos andar, ao enxergar a filha demonstrou seu afeto por meio das lágrimas, as
quais estamparam a camiseta que ela vestia.
Não, aquele não era um retorno,
embora tivesse prometido aos seus genitores que
voltaria num espaço mais curto de tempo do que da ultima vez, não se sentia mais
em casa.
Era preciso seguir, pois naquela
noite haveria espetáculo, não podia desapontar as crianças. Ao fechar o
portão-casca e focar a casa do outro lado da rua, era mais uma das laranjas,
que não conseguia chupar sozinha, assim como tantas outras coisas das quais
nunca conseguira extrair o supra-sumo.
1 Comentário
Belo conto, Fernando! Reminiscências pela laranja, o re-encontro, a fruta-pessoa-nômade, a leve melancolia de não extrair o supra-sumo: o que nos dá um Grande sumo de Conto. Parabéns! Abços
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