Desconhecimento
Tanto tempo / Como nunca mais, eu
penso
Como um samba de adeus / Com que jeito
acenar
O meu lenço / Branco / Quanto tempo
Pode durar um espanto / Onde lançar a
voz
Tempo / Tanto
Chico Buarque e Caetano Veloso
‘“Como um Samba de Adeus”
Desconhecido. Era como seu rosto se apresentava a mim
naquele início de manhã chuvosa. Apesar de que, de alguma forma, parecia-me familiar.
Mas o meu olhar, quando percorria seu contorno ou desenhava-lhe as rugas, meu
olhar acabava por desconhecer aquele rosto. E vez ou outra eu me perdia num
pelo de sobrancelha desarrumado, numa curva de nariz outrora reconhecida em meu
próprio espelho, ou numa cicatriz rosada no lóbulo da orelha. Era como se
redescobrisse, reencontrasse aquele homem que jamais vira antes.
Eu, de longe, observava todo o ritual que o envolvia:
pessoas que se aproximavam e o tocavam, outras que meneavam a cabeça em
expressão dolorida; uns que choravam juntos, outros que se conservavam
inalterados. E então todos, sem uma exceção que fosse, desviavam-se à mulher
que permanecia incondicionalmente ao seu lado, pálida e cabisbaixa, e a
cumprimentavam como em reverência. Ela, que tantas vezes semeara fogo nos
olhos, que tantas desafetos cultivara por inúmeras causas em sua juventude,
naquela hora conservava-se afável em consequência da evidente tristeza. Erguia
a face em respeito a cada um que vinha prestar-lhe homenagens e deixava
fugir-lhe das pálpebras uma ou duas lágrimas, para então mirar os próprios pés
novamente.
Ao contrário do homem, a mulher de olhar desconsolado não era uma estranha para mim. Muitas vezes tinha reconhecido em mamãe aqueles
olhos parados, profundos, como se vivessem em outros mundos que não o de suas
órbitas. Para ser justo, aquele olhar havia se ausentado de tudo desde que
Toinzito fora encontrado na praia, com um buraco de 38 no meio do peito e um
caranguejinho grudado nos lábios. Era como se os olhos tivessem sido
abandonados para sempre junto de meu irmão, velando-o, e o corpo dela se
obrigasse a continuar pelo outro filho e pelo marido.
E assim, durante três anos até esta manhã chuvosa, tentei
resgatar em mamãe os olhos e o viço de outrora, duas jabuticabas afogueadas a
rodopiarem em exclamações, censuras e maldições toda vez que surpreendia a mim
e a Isabela na sala dos fundos a ouvirmos LP’s de papai e nos tocarmos sob as
roupas. Só que nesses três últimos anos Isabela não vinha mais, e eu mesmo já
não vivia na mesma casa daquela salinha de LP’s ou de mamãe. Eu a havia deixado
por um casamento precipitado (um pretexto, talvez), e Toinzito por um uns
gramas de pó. E papai sempre fora um tanto calado demais, egoísta demais no que
dissesse respeito a qualquer emoção que fosse. Então, nestes últimos três anos,
cada um passou por sua dor da maneira que lhe foi permitido.
Nunca pensei que fosse encontrá-la novamente da mesma
forma que a encontrei quando Toinzito descansava a sorrir naquele caixão. As
jabuticabas abandonadas pelas chamas, o corpo esguio e quase sem vida, e a
cabeça que se erguia em contadas lágrimas e baixava novamente a cada abraço
sentido. E eu sempre longe, observando à distância, reconhecendo o choro
reprimido de mamãe a lhe preencher a alma para que todo o corpo se sustentasse.
E foi assim, desta mesma forma, que me escondi das condolências nesta manhã
chuvosa. Não porque não sentisse, mas porque sentia demais. Sentia pela minha
dor e pela dor de mamãe. Sentia por não poder abraçá-la sem ter que encarar
aquele homem desconhecido, e me reconhecer nele, pois nossas dores eram as
mesmas.
Por este motivo, e nenhum outro, escolhi o canto
abandonado da sala de velório, ao lado das coroas de flores de gerânios e
samambaias, enviadas pelo magazine X, o supermercado Y e o vereador Z. Ali, ao
lado das homenagens que ninguém olha – ou, se olha, atenta-se mais aos seus remetentes
que a um corpo mal vestido e jogado no canto do sofá. Mesmo os que da minha presença
se apercebiam e me analisavam a face, mesmo estes passavam, desavisados de
minha condição, já que desde que Toinzito morrera eu me trancara em minha
própria existência.
E talvez o verdadeiro motivo de mamãe ter esquecido o
olhar para sempre naqueles tempos foi a vida ter-lhe arrancado não um, mas seus
dois filhos, um para a morte, outro para o esquecimento. De qualquer forma,
aquela mulher de felicidade e nervos que afloravam aos poros murchou desde que
foi obrigada a colocar à mesa apenas dois pratos, desde que a rotina de lavar
roupas durou duas horas e não mais a tarde toda, desde que a televisão das
tardes de domingo deixou de transmitir o futebol. Papai não gostava de futebol.
Assim como aquele homem ao lado de mamãe, que certamente
não gostava de futebol. Gostasse, talvez não tivesse se rendido à depressão, talvez
estivesse torcendo por seu time ao invés de atirar-se do pontilhão que
interligava os dois lados da cidade, para estatelar-se lá embaixo na autovia.
Aquele homem que eu não conhecia, não entendia o semblante, pelo qual não
sentia compaixão. Mas que desvendava minha dor com sua presença, percorria meus
anseios com seus dedos estáticos, desfigurava-me com a profundidade de seus
olhos fechados. Aquele homem me revelava como se eu fosse parte dele. Ou ele de
mim.
E minha mãe sabia. Observava-me, entre um cumprimento e
outro, uma reverência e outra antes de baixar novamente a cabeça. E seu olhar
continuava perdido, profundamente distante, e às vezes eu mesmo duvidava se era
a mim que ele se dirigia. Eu apenas observava, comedido pelo receio. Receio do
total desconhecimento. Era estranho como tal sentimento impreciso se apoderava
de mim, uma faca de dois fios, uma história de dois fins. E então eu analisava
o homem por minutos, concentrado em seus cabelos acinzentados e suas mãos
sobrepostas, nos sinais das amarguras em torno dos lábios, na sobrancelha ainda
desarrumada. E, mesmo que pudesse distinguir um ou outro aspecto em minhas
memórias, aquele semblante tranquilo e leve – e arrisco-me, carregado de
felicidade – não me era comum.
Creio que seja por esse motivo que, mesmo sendo ele um
defunto, encarar seu rosto não fazia meu sangue pulsar mais (ou menos). Os
sentimentos borbulhavam e incomodavam mais pelo que minha postura causava sobre
mamãe do que pela presença dele. A mim, era como se aquele homem ali, a alguns
metros, não existisse, como se o fato de estar morto não tivesse qualquer
efeito sobre minhas impressões, pelo simples motivo de não o reconhecer. Um
indigente em minha história. Mesmo que fosse ele, o desconhecido, aquele homem
desta manhã chuvosa de abril. Mesmo que fosse o meu pai. Eu ainda não o
reconhecia em seu repouso.
Mariela Mei é poeta e escritora. Bloga em gracadesgraca.com
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2 comentários
Sinistro Mari!!! Ótimo tbm!
Obrigada, Georgina! Beijo grande, querida!
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