Era um domingo bonito de fevereiro, com sol e um calor úmido de verão,
quando acordei em paz, sabendo que veria novamente Isabel. Era paz ou eu queria
que fosse, não lembro, mas era bom.
Tomei um banho demorado de água bem quente, porque eu não gostava de água
fria. Me lembrava banho de mar na juventude. No dia anterior eu não tinha
tomado banho, esqueci, quase tanto quanto tinha esquecido da noite anterior ao
dia anterior. Demorei no chuveiro, depois me vesti com as poucas roupas limpas
que eu tinha, porque eu nunca lembrava de lavar roupas, louças ou limpar a
casa. Escolhi um colete preto sem mangas com vários bolsos, coloquei-o sobre a
camiseta branca. Num dos bolsos, encaixei um mp3 velho de tanto cair no chão,
arranhado e já sem pintura, que eu tinha comprado na Uruguaiana anos antes. Olhei
pela janela e me deu vontade de fugir. Lembrei que não tinha emprego, que nada
mais me prendia. E decidi que ia mesmo fugir. Ou quis decidir assim, mas não me
lembro se tive coragem.
Coloquei os fones no ouvido e liguei o aparelho. Aleatoriamente, começou
a tocar A change of seasons. Acabou dando praia, pensei. E saí.
A casa era grande, a casa da Isabel. Dois andares na Tijuca, numa rua
pouco habitada, calma, bu-có-li-ca. Em redor, um quintal de árvores com flores
amarelas que, como o Rio de Janeiro parece não seguir estação alguma, estavam
caindo como no outono, mesmo sendo verão.
A calçada e o jardim da casa estavam cobertos de flores amarelas e, por
um momento, pensei que, quando éramos jovens, eu e Isabel gostávamos de
flamboyants, flores muito vermelhas, caídas pelas ruas de Paraty. Quando as
flores vermelhas caem, pintam de sangue o chão. Mas as flores eram amarelas. O
chão estava pintado de luz, raios de sol, brilhantes como a felicidade que
Isabel devia ter conquistado. E eu não.
Só por um momento lembrei disso. Todo o resto só refleti agora. Porque,
sem que eu sequer me movesse, sem que eu tocasse a campainha, batesse palmas,
gritasse ô de casa como era costume no interior de onde eu vim, uma voz lá de
dentro respondeu ao chamado nunca feito:
–Já vai!
Era Isabel. Devia estar me esperando, como fazia antes, quando eu
prometia visitá-la na juventude, e essa empolgação em me rever me deu alegria,
me inflou o ego e me esperançou. Ela apareceu daí a poucos segundos, com as
chaves da casa na mão pra me abrir a porta.
A alegria se assustou e fugiu, a esperança saiu pela esquerda. E o ego
inflou. Mais.
Isabel vinha ainda manca, as pernas tortas, apoiada nas muletas
costumeiras. Na mão direita, carregava a chave que meteu na fechadura pra me
permitir penetrar seu jardim pingado de flores de sol. Na outra, a aliança de
casamento, arranhada e sem brilho. Ela estava muito gorda, uns noventa quilos
talvez, e era ainda mais baixa e encurvada do que eu me lembrava. Suas pernas à
mostra estavam riscadas de altas veias verdes, seu vestido era simples, de um
tecido grosseiro de algodão, e uma estampa cafona de flores vermelhas. De flamboyants,
pensei. Pintando Isabel.
Com empolgação e alguma dificuldade, ela me abraçou. Quis sentir alegria
ao abraçá-la, mas senti um pouco de dó, muito horror e um orgulho do caralho. Eu
tinha envelhecido, não dá pra resetar o save game (dá no máximo pra tentar
pegar todos os continues até a hora derradeira do fatality), mas eu ainda tinha
a beleza que havia feito de mim uma mulher cobiçada na juventude e ainda ali,
aos trinta e cinco e nenhuma conquista na vida. Só depois pensei que era
justamente por isso que eu era desgraçada, miserável. Porque tudo que eu tinha
era algo fadado a acabar. Lentamente, o que é ainda mais doloroso.
Isabel foi me guiando até a sala por um caminho de árvores amarelas com
flores caídas. Da casa ao lado, uma música muito alta e distorcida me fez
acreditar que os vizinhos de Isabel tinham um estúdio com uma banda de rock em
horário de ensaio, tocando com perfeição algo que me pareceu Deep Purple. Can
you remember? Remember my name?, uma voz conhecida cantava.
O caminho até a sala era longo e amarelo, como o fundo de tela do meu
computador quando comecei a trabalhar no meu último emprego, aquele que eu já
não tinha. Mas eu logo havia trocado o caminho amarelo por um dragão verde e
lilás sobre algumas rochas. Agora que eu não tinha mais emprego, nem computador
do emprego, meu dragão já não morava mais comigo, devaneei. Quando despertei,
estava acomodada no sofá da sala de Isabel. E senti, como numa inversão muito
irônica, que eu queria a vida dela.
Era eu, sentada naquele sofá tão macio, sem rasgos, sem cheiro de mofo
pelos cantos daquela sala, o piso frio vermelho bonito, um tapete persa que
devia ser mesmo persa, móveis de madeira de lei, um cômodo grande, abajures e
bibelôs talvez de porcelana sobre mesas com tampo de vidro, quadros quem sabe
se caros pendurados pelas paredes, uma cristaleira com copos de cristal, um
relógio de parede com inscrição de Hamburgo, era eu, olhando tudo aquilo, que queria
que aquela casa fosse minha, com um lugar tão macio como aquele sofá pra me
sentar. Eu não tinha mesmo porra nenhuma na vida. E eu não tinha ninguém,
concluí. Porque Isabel já não saberia mais fazer parte do meu universo.
Entrou uma empregada e foi até a patroa. Disse que ele tinha mandado
perguntar se amanhã à noite ela podia. Isabel sorriu com aquele olhar deslumbrado
só dela e disse que ia. A mulher saiu.
Isabel me disse que tinha uma surpresa pra mim. Abriu a enorme porta com
duas grandes folhas de madeira de lei do cômodo ao lado. Pela porta
entreaberta, pude ver um piano de cauda, um lustre de contas de cristal muito
grande pendendo do teto e algumas janelas com vitrais coloridos que davam pro
que acreditei ser uma piscina nos fundos do terreno, porque um reflexo no teto
parecia de água ao sol.
Logo ela voltou, trazendo algo nas mãos, que ela tentava esconder atrás
das costas. Fechou a porta atrás de si, explicando que aquele era o escritório
do marido dela, pianista alemão de sucesso ou coisa do tipo, que não me lembro
mais, e que ele não gostava de deixá-lo aberto quando tinha visita na casa. Sem
habilidade pra segurar o objeto que trazia, fechar a porta e se apoiar nas
muletas ao mesmo tempo, Isabel acabou me deixando ver que o objeto era o meu LP
do Queen ao vivo em Wembley. Três LPs com encartes temáticos do estádio, uma
raridade. Como eu tinha desejado ter de volta uma das minhas poucas coisas
raras. Só então recordei que tinha esquecido de levar pra ela O pequeno
príncipe.
Ah, tudo bem, ela disse, com umas vogais arrastadas que me irritavam. Se
eu desse o meu endereço, ela ia lá qualquer dia pra pegar o livro. Confessa,
ela falava, você esqueceu só pra eu ter pretexto pra ir à sua casa, não foi? Quis
dizer que não, eu não gostava de visitas, minha casa era muito feia, e por isso
mesmo relutei pra dar a ela o meu endereço, mas não hesitei o suficiente e
acabei escrevendo rua do Riachuelo número tal centro num papel rasgado, talvez
porque eu gostasse da ideia de tê-la dividindo comigo a minha mediocridade, de
ter alguém novamente pra dividir a minha mediocridade. Talvez porque eu quisesse
que esse alguém fosse novamente ela. E Perfect Strangers entrava com força
pelas portas e janelas da casa grande de dois andares na Tijuca, que era de
Isabel e do marido alemão pianista dela.
–E o que você pensa em fazer da vida?, ela me perguntou, sem se sentar. Tive
que olhar pra cima pra falar com ela. Achei que ela fazia isso de propósito.
Hoje tenho certeza.
–Perdi o emprego! – Eu tinha dito isso com a esperança de me sentir ainda
confortável em contar a ela tudo. Mas sentada ali, olhando pra cima, naquela
casa grande e rica de uma vida grande e rica que era dela e não minha, percebi
que estava me sentindo humilhada em ter contado da minha demissão.
–Mas você consegue outro. Você é tão inteligente! Aposto até que se
formou.
Eu ia dizer fiz mestrado, fiz o meio do doutorado até ser cantada pelo
meu orientador, socar a cara dele e finalmente admitir que eu achava a academia
um saco. Mas não disse. Porque eu já começava achar aquela visita um saco.
–Acho que vou dar um tempo fora do Rio, foi o que respondi.
–E pra onde você vai?
–Não sei, não pensei... Pra um lugar limpo, longe. – O Canadá, quis
dizer, vou fugir pro Canadá, como eu sempre quis. Mas continuei a frase de
antes, porque era mais fácil. – Procurar uma resposta, talvez, alguma coisa que
me dê vontade de continuar vivendo.
Senti que Isabel, que olhou pra parede de trás, não quis me deixar
perceber que seu lábio tremia. Mas eu já tinha percebido. Ou tinha preferido
imaginar assim.
Acho que foi pra mudar de assunto que ela quis me levar pra conhecer a
casa toda, mas não pôde. O bebê tinha começado a chorar e uma empregada entrou
na sala, carregando uma criança de uns seis meses. Isabel, contrariada, segurou
uma menina daquelas que a gente acha que só tem em comercial de fralda, levou a
garota ao peito como se fosse obrigada. E acho que era. A empregada me olhou de
cima abaixo antes de me abrir um sorriso e dizer que a pequena Vitória gostava
do colo da mamãe, que a mamãe tinha muito leite e outras coisas que eu já não
ouvia:
–Vitória?, eu perguntei.
Isabel sorriu pra mim, meio torto. Pela primeira vez desde que tinha
segurado o bebê. E me disse:
–Você atendeu o meu pedido afinal.
1 Comentário
Olá querida!
Um belo texto, cheio de boas lembranças, muito bom!
Beijos
Postar um comentário